30 anos de produção da Câmara sobre trabalho e emprego

Postado por OLB em 01/05/20

por Debora Gershon e Fernando Meireles

Apresentação

Passados 77 anos da promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a manutenção de direitos trabalhistas é tarefa ainda desafiadora. Nas últimas duas décadas, o Brasil passou por grandes transformações no mundo do trabalho e, por conseguinte, em suas normas regulatórias. Apesar do sentido inequívoco verificado nos últimos anos de flexibilização das regras vigentes, houve também movimentos no sentido inverso, de expansão dos direitos existentes. Recentemente, o tema “trabalho e emprego” assumiu nova proeminência no legislativo, majoritariamente alinhado à ideia de que a legislação atual é enrijecida e, portanto, um obstáculo ao pleno desenvolvimento da economia nacional.

Com o objetivo de identificar o perfil da produção da Câmara dos Deputados a respeito da temática trabalho e emprego, o Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) analisou 6381 proposições entre 1989 e 2020, selecionadas segundo classificação do setor de documentação da Câmara (ver seção metodologia). O resultado é um balanço inédito sobre a agenda trabalhista da câmara baixa brasileira nos anos seguintes à redemocratização.

Balanço geral: volume e autoria da agenda

Nos últimos 30 anos, 6381 proposições sobre trabalho e emprego passaram pela Câmara dos Deputados, das quais 6014 (94%) são projetos de lei ordinária (PLs), 184 projetos de lei complementar (PLP), 123 propostas de emenda constitucional (PEC) e 64 medidas provisórias (MPV). Em todo o período, o Poder Executivo apresentou somente 150 proposições (2%), enquanto os deputados têm autoria de 92% delas. Demais órgãos da Câmara, Congresso Nacional e Senado Federal são autores das 6% restantes.

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Se observado o volume anual de proposições sobre o tema, dois aspectos chamam a atenção. Em primeiro lugar, há um número muito maior de propostas apresentadas no início de cada legislatura. O dado não surpreende, na medida em que também é historicamente maior o volume total de proposições do primeiro ano de mandato, como decorrência, dentre outras razões, do fato de que parlamentares recém-eleitos buscam resultados mais imediatos diante de um eleitorado geralmente ainda atento aos feitos de seus escolhidos. Em segundo lugar, fica evidente o salto no número de proposições apresentadas no ano de 2019, comparativamente ao restante da série. Dos governos retratados na pesquisa, o início do mandato de Bolsonaro destaca-se como aquele em que a Câmara produziu mais projetos sobre trabalho e emprego. Foram apresentadas 542 proposições, um aumento de quase 40% em relação ao primeiro ano da legislatura anterior. Consideradas as preferências políticas dos atuais parlamentares, é possível que esse crescimento já expusesse um ímpeto renovado para flexibilizar a legislação trabalhista.

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Por governo, é a partir do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC) que o padrão de atuação legislativa sobre o tema muda, com crescimento expressivo do número de proposições apresentadas na Câmara. De FHC II a Dilma I, mantém-se uma média anual de aproximadamente 230/240 propostas. No segundo mandato de Dilma, com a economia entrando em crise, essa média cresce, embora, no governo de Temer, ela volte ao padrão anteriormente observado em FHC e Lula. Já Bolsonaro apresenta média anual de projetos sobre o assunto maior do que em qualquer outro período da série.

O comportamento da Câmara em cada mandato não dialoga necessariamente com os movimentos de aumento e queda das taxas de desemprego, dado que, embora em momentos de desemprego alto tenha havido certo aumento do número de projetos, a queda do desemprego entre os anos de 2003 e 2014 não se refletiu em diminuição consistente do número de proposições.

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Os partidos na agenda trabalhista

Dentre as proposições sobre o tema que tiveram como autor um(a) deputado(a) federal, o partido com maior número de iniciativas é o PT, responsável por cerca de 1 em cada 6 proposições apresentadas por parlamentares. PT, PSDB, MDB e DEM, partidos com grandes bancadas, são juntos responsáveis por quase metade de todas as proposições do período. Destes, PT e MDB são os que mantêm participação mais acentuada ao longo de toda a série.

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Para possibilitar uma comparação mais acurada entre os partidos, considerando-se que o número de proposições de cada um deles depende do tamanho de sua bancada, o gráfico abaixo apresenta a média de proposições por parlamentar em cada partido, por governo. As linhas verticais tracejadas indicam a média da Câmara em todo o período, que é de 0.53 proposições por parlamentar/ano.

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Os dados mostram que ser governo ou oposição não é fator determinante para que os partidos apresentem proposições sobre o tema. Ideologia e base social, por outro lado, podem explicar a atuação do PCdoB e do PT em quase todos os governos desde 1989, independentemente de sua posição frente ao governo. No segundo governo do PT, o PCdoB, partido governista aliado, apresentou maior média de propostas sobre o assunto, enquanto o PT, por sua vez, manifestou comportamento bastante semelhante nos governos FHC II e Lula I. Ou seja, muito embora o tema possa ser mais afeito a alguns partidos do que a outros, a posição do Executivo, somada a alguns fatores externos conjunturais, parece mobilizar esforços na Câmara de partidos oposicionistas e governistas, simultaneamente, ainda que em direções eventualmente opostas.

Proteção ou flexibilização: como se comportaram os governos desde 1989

A despeito das mais de 6300 proposições sobre trabalho e emprego nos últimos 30 anos, apenas 163 foram transformadas em norma jurídica. Os dois governos de Lula e o primeiro de Dilma são aqueles em que a Câmara aprovou o maior número de mudanças legislativas sobre o tema. Vale ressaltar, no entanto, que muitas das proposições apresentadas na Casa durante o governo de Bolsonaro ainda tramitam no Congresso Nacional.

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No que diz respeito à autoria das iniciativas aprovadas no período, destaca-se o Poder Executivo, que aprovou 68 das 150 propostas de sua iniciativa – o que corresponde a uma taxa de sucesso de 45%. Em contraposição, de forma semelhante ao que se observa em outros temas, apesar da maior proatividade na elaboração de projetos, a Câmara transforma em norma jurídica apenas uma ínfima parcela de tudo aquilo que propõe (1,5%).

Dentre os governos do período, considerados, neste caso, apenas os projetos de autoria governamental, o primeiro mandato de Lula novamente se destaca como aquele de maior êxito – foram 21 normas sancionadas frente a um total de 35 proposições enviadas à Câmara (taxa de sucesso de 60%). Dentre as 21 matérias de sua iniciativa que versam sobre o assunto, estão a criação de política de valorização do salário mínimo, a reforma da previdência do setor público, o seguro-desemprego para pescadores artesanais em época de defeso, o reconhecimento formal das centrais sindicais, dentre outras. Dilma II e Temer também tiveram altas taxas de aprovação do que propuseram, embora o número de projetos de sua iniciativa tenha sido incomparavelmente inferior.

Importante ressaltar, contudo, que taxas de sucesso legislativo menores não indicam que os governos tenham sido pouco exitosos na aprovação de medidas de grande impacto sobre as relações de trabalho em âmbito nacional. Nos governos de FHC, por exemplo, houve aprovação de uma série de novas regras de contratação flexível e remuneração, a exemplo do contrato por prazo determinado, do banco de horas e da participação em lucros e resultados; enquanto no governo de Temer foi aprovada uma das maiores reformas trabalhistas dos últimos tempos, com instituição do contrato de trabalho intermitente, regulamentação de terceirização em atividades-fim, ampliação do uso do contrato de trabalho do autônomo sem prazo definido e priorização de acordos de trabalho individuais em detrimentos dos coletivos.

O próximo gráfico apresenta proposições transformadas em normas jurídicas em cada governo. A categoria “Outras” inclui medidas que perderam eficácia, projetos rejeitados, arquivados e com tramitação não finalizada, dentre outras situações do gênero.

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Trabalho e emprego na legislatura atual

Nada menos que 712 proposições sobre trabalho e emprego foram apresentadas na Câmara em menos de 1 ano e meio de trabalho legislativo, dentre as quais se incluem a reforma da previdência e o programa emergencial de suporte a empregos. A média de apresentação de projetos dessa natureza por parlamentar durante a atual legislatura é de 1.36, 2.5 vezes maior do que a média per capita nos 30 anos da série. O quadro é indicativo de que o assunto é, no momento, caro ao parlamento e ao governo. O aprofundamento da flexibilização da legislação trabalhista é uma das bandeiras do ministro da Economia, Paulo Guedes, como também de grande parte da Câmara, embora não sem resistência de partidos de esquerda. Além disso, a necessidade de resposta urgente à crise da Covid-19 tem aumentado o número de medidas sobre o assunto, bem como proporcionado divisão ainda maior do parlamento.

A distribuição partidária dessas proposições, contudo, segue padrão relativamente semelhante ao observado anteriormente. Partidos com bancadas maiores, como PT e PSL, lideram em número de proposições encaminhadas à Mesa Diretora, seguidos por partidos mais à esquerda como PSB e PDT. Ou seja, mantém-se a máxima de que mais deputados produzem mais sobre qualquer tema, bem como o padrão de que a temática em tela não é monopólio de partidos de situação ou oposição. As diferenças nas médias per capita de apresentação de projetos entre eles são muito pequenas – exceção, no entanto, à cargo do Podemos, partido fiel à agenda governamental, que apresenta média por parlamentar muito superior às demais legendas.

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Para entender como o plenário da Câmara tem se comportado nas votações sobre trabalho e emprego, selecionamos 50 votações com registro aberto de votos dentre as 78 realizadas entre 2019 e abril de 2020 e utilizamos um algoritmo popular na Ciência Política que mensura as preferências dos parlamentares a partir de seus votos. Como resultado, cada parlamentar foi posicionado em uma escala de -10 a 10, em que -10 indica maior oposição ao governo e 10 maior governismo. A distribuição do plenário nesta escala pode ser vista abaixo.

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O resultado indica existirem dois grandes grupos que polarizam as votações sobre o tema no plenário, com preponderância do grupo mais governista. A distância entre os grupos, além disso, é ainda mais saliente pela ausência de um número considerável de parlamentares ocupando o centro do espectro de governismo, embora nem todos os partidos tenham alto grau de coesão do ponto de vista de seu posicionamento frente ao tema.

O comportamento parlamentar no tema trabalhista, portanto, é semelhante ao padrão geral de comportamento da atual legislatura. O gráfico seguinte desagrega a posição de alguns partidos na escala, ajudando a entender o cenário de polarização.

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Conforme indica o gráfico, PT e DEM são os partidos mais disciplinados nas votações sobre medidas relativas à trabalho e emprego, dado a pouca dispersão de suas curvas relativamente a outras legendas. Ou seja, são esses os principais partidos estruturados da disputa política em torno de proposições sobre o tema, cujos votos de seus parlamentares apresentam pouca divergência.

Do ponto de vista da localização espacial dos partidos, novamente aqui o centro aparece escassamente povoado, com casos isolados de votos, especialmente do PDT e do PSB. Vale observar, por fim, que a posição do PT não está tão radicalmente à esquerda quanto estão à direita as posições do DEM e do PSL. Isso sugere que parte da polarização observada no gráfico é resultado principalmente do posicionamento desses dois partidos, devendo-se considerar que o PSL vota de forma mais governista que o DEM, embora também menos disciplinada. A proximidade ideológica entre os dois partidos é interessante de se observar, em um momento em que o presidente Jair Bolsonaro encontra enormes dificuldades para formar uma base relativamente coesa.

Um ranking das legendas que ocupam assentos na Câmara, organizadas por posição no eixo governismo, pode ser visto no gráfico abaixo, em que os pontos indicam a posição média de cada bancada, acompanhada de intervalos de confiança de 90%.

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Conclusão

O legislativo foi o grande propositor da agenda trabalhista dos últimos 30 anos, embora tenha sido o executivo o poder a definir o sentido das alterações efetuadas nas normas que regulam o mundo do trabalho. Há algumas explicações potenciais para este fato, dentre as quais destacamos duas. A primeira delas é que, ao menos até 2005, o executivo era efetivamente o autor da maior parte de todas as proposições aprovadas na Câmara. O sucesso dos parlamentares na aprovação de seus projetos era muito pequeno em todas as matérias indiscriminadamente. A agenda legislativa era controlada pelo governo. A segunda diz respeito à natureza da própria agenda. Normas que regulam as relações de trabalho têm impacto profundo sobre a vida dos(as) brasileiros(as) e sobre a economia em geral. É assunto que mobiliza esforços de qualquer governo no sentido de reduzir ao mínimo a atuação parlamentar divergente da agenda governamental.

Ao longo de todo o período, a alteração da CLT foi o subtema de maior destaque e o PT o partido que mais proposições apresentou, parte delas dedicada à proteção ao trabalhador, em movimento consistente com a origem sindical do partido. A decisão pela apresentação das propostas não responde à lógica governo-oposição, embora os dados da legislatura atual indiquem que é essa divisão a que dita o comportamento partidário em plenário, com partidos mais ou menos disciplinados. No que diz respeito à aprovação da agenda legislativa sobre o tema, os dois governos de Lula foram o período de maior êxito, sob o ponto de vista do sucesso tanto do legislativo quanto do executivo.

O resultado, no entanto, que mais sobressai na pesquisa é a limitada participação dos(as) deputados(as) federais na legislação efetiva sobre o assunto, comparativamente ao seu esforço de formulação e proposição. É possível que a agudização recente do protagonismo do Congresso passe a produzir resultados diferentes, mas também é imperativo que, do ponto de vista do aumento de sua própria eficiência, a Câmara avalie o custo de se apresentar mais de centenas de projetos sobre determinado assunto por ano, sem que haja trabalho de sistematização, concatenação e priorização da agenda.

Metodologia

Para elaborar este relatório, coletamos um conjunto de informações sobre a atividade legislativa na Câmara dos Deputados. Os dados que utilizamos foram extraídos do Portal de Dados Abertos da Câmara dos Deputados e processados pela equipe de pesquisadores do OLB. Para calcular as estatísticas descritivas que reportamos nos gráficos, utilizamos o ambiente de programação estatístico R. Particularmente, utilizamos a classificação feita pelo setor de Documentação da Câmara para identificar proposições sobre trabalho e emprego. Por esse critério, a amostra de proposições que analisamos contém 6381 proposições apresentadas entre 1989 e 17 de abril de 2020.

Para calcular o ranking de governismo sobre trabalho e emprego, coletamos o registro de votações realizadas entre fevereiro de 2019 e abril de 2020 do repositório de Dados Abertos da Câmara. Desse universo, excluímos votações que não tiveram conflito, isto é, votações nas quais não houve sequer 2% de parlamentares que votaram contrários à maioria vencedora – procedimento comum para evitar que votações unânimes entrem no cômputo do governismo. Ao final, a amostra que analisamos contém 45 e votações, que foram então analisadas por meio do algoritmo W-nominate, que extrai dimensões latentes a partir dos dados de votação. Nesse processo, o algoritmo encontra quais dimensões explicam a maior parte da variação nos resultados das votações. Em nossa aplicação, utilizamos a dimensão com maior poder explicativo, a qual interpretamos, com base em em testes adicionais, como sendo governo-oposição. Parlamentares com padrões de votação similares receberam scores similares, enquanto outros com históricos de votos divergentes foram posicionados com maior distância. Para facilitar a exibição dos resultados, transformamos os scores do w-nominate para o intervalo de -10 a 10. Alguns dos gráficos que reportamos no texto exibem funções de densidade, isto é, a probabilidade de que um ou uma parlamentar tenha dado score; valores mais altos indicam que há mais parlamentares com determinado score, e vice-versa.

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