Postado por OLB em 16/09/20
Por Debora Gershon, Fernando Meireles e João Feres Júnior
Com um índice de renovação de mais de 50%, a Câmara assumiu novo perfil em 2019: grande número de profissionais liberais e empresários eleitos, redução expressiva da bancada sindicalista, crescimento da bancada de segurança (ou da bala) e fortalecimento político da bancada evangélica. Essa nova legislatura criou expectativas de avanço da agenda liberal-conservadora no parlamento e de acirramento dos debates em torno de uma pauta rígida de costumes, que garantiu, em 2018, considerável soma de votos a Bolsonaro.
Desde o início de 2019, são muitas as evidências do avanço da agenda liberal do governo, ainda que com perdas significativas impostas ao Executivo, especialmente pela Câmara. A pauta econômica é destaque dentre as legislações aprovadas, e a despeito da polarização das votações entre esquerda e direita, o governo manteve taxa de apoio parlamentar maior que 70% – a menor dos últimos 20 anos, mas ainda assim suficiente para manter o governo em posição confortável.
Esse apoio ao governo, contudo, não foi concedido em cenário de parceria e cooperação. Sem coalizão legislativa estruturada até aqui, decisão aparentemente revista com o movimento de aproximação ao Centrão, Bolsonaro e seus aliados têm protagonizado conflitos recorrentes com os poderes legislativo e judiciário. Os dissensos se acumulam desde o início da legislatura, sem grandes períodos de remissão, o que coloca dúvidas sobre a real extensão do governismo parlamentar. Não há muita clareza, por exemplo, sobre como deputados e deputadas se posicionam em questões não relativas à economia, mais próximas da pauta de costumes que foi objeto de campanha do presidente.
Com o objetivo de melhor entender o comportamento da Câmara nessa pauta, o Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) analisou votações nominais da atual legislatura de proposições classificadas em três temas específicos: “defesa e segurança”, “direitos humanos e minorias” e “arte, cultura e religião”. São 46 votações nominais enquadradas nesses temas. Nossa pergunta central é se o perfil conservador da Câmara garante sustentação das preferências governamentais nos três temas, que seriam os mais próximos a uma pauta de costumes, ou se o grau de polarização observado na casa, somado a outras variáveis conjunturais, gera quadro diverso.
Em primeiro lugar, vale ressaltar o pequeno avanço da pauta de costumes na agenda legislativa de 2019 a 2020. As 46 votações nominais – número suficiente para identificação do padrão de votação dos parlamentares – referem-se a apenas 9 proposições/projetos. Se esse número é pequeno, por um lado, a quantidade de votações nominais ocorridas ao longo da tramitação desses projetos, por outro, pode ser indicativa do maior esforço para construção de consensos.
Das 9 matérias, 6 foram transformadas em lei e 5 dizem respeito à segurança pública. Em segurança, estão enquadrados o pacote anticrime, além de projetos que versam sobre terrorismo, criação de polícias, posse de armas de fogo e mudanças na legislação penal. Há um projeto que trata dos direitos de populações atingidas por barragens e outros três mais genéricos sobre cultura, esporte e saúde.
Dentre as razões possíveis para o pequeno volume de projetos, destacamos duas: a Câmara privilegiou pautas econômicas em 2019, tendo passado boa parte do ano em torno da aprovação da reforma da previdência e do orçamento impositivo. Em 2020, a pandemia de Covid-19 dominou a pauta.
Para análise do apoio dos parlamentares ao governo nessas 46 votações empregamos um algoritmo que diferencia votos dados de acordo com a importância que tiveram em determinadas votações, excluídas as votações consideradas consensuais (ver seção de metodologia, abaixo). A partir disso, classificamos os parlamentares em um continuum que vai de 0 a 10, em que notas mais próximas de 10 indicam maior adesão à posição governista.
No gráfico a seguir, é possível observar que a maior parte do plenário tendeu a votar seguindo as preferências governistas nos três temas analisados, conforme demonstrado pelo pico da figura 1. À esquerda, em que se situa a oposição, há um pequeno grupo dissidente e isolado.
Para inferir as posições dos partidos nas mesmas votações, utilizamos um modelo de regressão linear, cujo resultado pode ser visto no gráfico abaixo, em que as linhas horizontais indicam o grau de disciplina ou coesão partidária de cada bancada. Linhas maiores representam bancadas menos disciplinadas. De acordo com os dados, há clara contraposição do PSOL à maioria governista. Rede, PT, PCdoB e PSB também têm notas médias menores, o que denota posição contrária ao governo, destacando-se o PT como a única bancada, à esquerda, altamente disciplinada. Do conjunto de partidos com preferências diferentes das governamentais, a Rede é o que vota de forma menos coesa.
No extremo oposto do gráfico, PSL e NOVO despontam como os partidos com posições mais governistas nos temas analisados, embora suas médias não estejam muito distantes daquelas obtidas por partidos tradicionais, como PSDB, ou do chamado Centrão, como PP e PSD. Ou seja, de forma idêntica ao quadro demonstrado na figura 1, o padrão de votação dos partidos de centro está mais próximo do padrão de voto observado nos partidos localizados mais à direita do que à esquerda do espectro político-ideológico partidário.
Finalmente, a figura 3 exibe o posicionamento individual dos parlamentares nas votações analisadas. A deputada Bia Kicis (PSL-DF) e o deputado Carlos Jordy (PSL-RJ) têm as maiores notas estimadas, sendo, portanto, os parlamentares mais fiéis às propostas governamentais. Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e, em seguida, Alessandro Molon (PSB-RJ) destacam-se na oposição. Aécio Neves (PSDB-MG) é um dos representantes que mais informam o posicionamento médio do plenário no período, o qual, como apontamos acima, está bem mais próxima da posição governista do que da oposição.
A despeito de ter grande importância nas falas do presidente, a agenda de costumes avançou pouco de 2019 a julho de 2020. A Câmara não foi ativamente mobilizada para tratar de temas consistentemente defendidos pelo governo, tais como o endurecimento da legislação contra aborto, a “despartidarização” do ensino e o combate a políticas de equidade de gênero, entre outros. A crise econômica enfrentada pelo Brasil, a pandemia de Covid-19 e a própria posição do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, contrária a uma agenda de costumes mais radical, podem ser fatores que explicam o pequeno espaço até então ocupado por essa agenda no Congresso. Embora não haja perspectivas concretas de mudança desse cenário no curto prazo, a alternância da presidência da Câmara e a aproximação entre governo e Centrão podem contribuir para mudar essa situação.
A despeito do avanço modesto da posição governista, no entanto, as mais de 40 votações nominais sobre o tema mostram um quadro interessante. Em primeiro lugar, revelam a força da bancada da segurança, que, em meio ao protagonismo da agenda econômica, conseguiu pautar e aprovar matérias que flexibilizam o porte e a posse de armas. Em segundo, permitem constatar que ao menos parte dessa pauta conta com apoio majoritário dos parlamentares, à revelia de uma pequena oposição. Tal resultado, se não conclusivo pelas razões já expostas, sugere maior cuidado na afirmação comum de que o apoio da Câmara ao governo é fruto da simples coincidência entre suas agendas econômicas.
Para analisar o posicionamento dos parlamentares em votações nominais de matérias sobre defesa, cultura e direitos humanos, coletamos informações sobre 46 votações nominais (i.e., aquelas nas quais parlamentares têm seus votos registrados em plenário) desde fevereiro de 2019. Em uma segunda etapa, excluímos votações que não tiveram conflito, isto é, votações nas quais não houve sequer 2% de parlamentares que votaram contrariamente à maioria vencedora – procedimento comum para evitar que votações unânimes entrem no cômputo do governismo. Ao final, a amostra que analisamos contém 36 votações.
Com os dados organizados, implementamos o algoritmo W-nominate, que extrai dimensões latentes a partir dos dados de votação. Nesse processo, o algoritmo encontra quais dimensões explicam a maior parte da variação nos resultados das votações. Em nossa aplicação, utilizamos a dimensão com maior poder explicativo, a qual interpretamos, com base em em testes adicionais, como sendo governo-oposição. Parlamentares com padrões de votação similares receberam scores similares, enquanto outros com históricos de votos divergentes foram posicionados com maior distância. Para facilitar a exibição dos resultados, transformamos os scores do w-nominate para o intervalo de 0 a 10.
Para selecionar as proposições dos temas que analisamos, recorremos à classificação temática de proposições elaborada pelo setor de documentação da Câmara dos Deputados, disponível no repositório de Dados Abertos da casa.