Governo e Congresso na contramão do meio ambiente: a derradeira agenda de 2022

Postado por OLB em 08/03/22

Debora Gershon

A agenda ambiental do governo Bolsonaro é clara desde a campanha eleitoral de 2018. Em pleno ano de 2022, contudo, ela ainda é capaz de causar espanto e indignação, tamanho o nível de destruição a que se propõe. Sem pauta positiva sobre o tema, o governo e, mais recentemente, o Congresso têm desempenhado papel ativo na flexibilização do arcabouço jurídico e institucional construído a duras penas a partir da Constituição de 88, responsável por alçar o Brasil à condição de país com assento nas principais mesas de negociações internacionais acerca de desafios ambientais atuais e futuros.

Desde 2019, Bolsonaro segue à risca suas promessas de campanha para “destravar” o “desenvolvimento” por meio da eliminação de restrições de cunho ambiental e do avanço sobre terras indígenas (TIs). Propôs, embora sem êxito, a extinção do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Se empenhou na tentativa da transferência de competências do MMA para o Ministério da Agricultura (MAPA). Reduziu o orçamento e a autonomia de órgãos de fiscalização e monitoramento, a exemplo do IBAMA, do ICMBio e do INPE. Burocratizou e flexibilizou normas para aplicação de infrações ambientais. Abriu mão de o país sediar a Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas – Cop25. Retirou a sociedade civil organizada da composição de conselhos ambientais. Permitiu a elevação a níveis alarmantes do desmatamento, especialmente na região amazônica, perdendo acesso, inclusive, a fundos internacionais. Estimulou, por ação e omissão, o “dia do fogo”, marcado pela queima de diversas áreas de floresta na região norte do Brasil, orquestrada por fazendeiros e grileiros. Não demarcou uma terra indígena (TI) sequer (o primeiro presidente pós-redemocratização a contrariar esse compromisso constitucional) e incentivou o garimpo em terras já demarcadas e em processo de demarcação. Tentou extrair petróleo nos arredores de Abrolhos e Fernando de Noronha, áreas de proteção ambiental. Determinou o fim da proteção às cavernas no Brasil. A implementação dessa extensa agenda ambiental negativa se deu, majoritariamente, por meio do manejo de cargos, de orçamentos e de mudanças infralegais, já que o presidente não demonstrou capacidade para coordenar os esforços do Congresso nessa mesma direção, a despeito do apoio expressivo dos parlamentares da Câmara e do Senado a outras pautas governamentais.

Três eventos, contudo, fizeram a pauta (anti)ambiental do presidente ganhar fôlego legislativo: a saída desonrosa de Ricardo Salles do MMA, acusado de crime ambiental em meados de 2021 e autor da famosa metáfora do “passar a boiada” –, a eleição do deputado Arthur Lira (PP), aliado de Bolsonaro, à presidência da Câmara, em janeiro do mesmo ano, e a proximidade das eleições. A mudança de comando da Câmara, o fortalecimento dos laços com o Centrão ao longo de 2021 e a expectativa de manter o apoio de determinados setores econômicos em outubro de 2022 parecem ter contribuído para encorajar o presidente a transformar sua narrativa e prática infralegal em questões relativas ao meio ambiente em agenda legislativa pública.

A portaria 667/2022, que apresenta a agenda legislativa prioritária do governo federal para 2022, cumpre exatamente essa função, num esforço de coordenação da base do governo no Congresso, mas também de sinalização eleitoreira, particularmente ao agronegócio e à Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). Das 45 proposições legislativas priorizadas, seis projetos de lei (PLs) impactam profundamente o marco regulatório ambiental brasileiro e o sistema de proteção de populações tradicionais. São eles os PLs 2633/2020 e 510/2021, ambos tratando de regularização fundiária; o PL 3729/2004, que trata de licenciamento ambiental; os PLs 490/2007 e 191/2020, que tratam de demarcação e exploração econômica de TIs e o PL 2629/2020, que flexibiliza o uso de agrotóxicos no país. É um indício de que “a boiada” pode continuar passando, mas agora a olhos vistos e com ampla divulgação, já que isso (re)aproxima o presidente de segmentos que o apoiaram fortemente nas eleições de 2018.

Os dois PLs sobre regularização fundiária favorecem a grilagem por uma série de razões. O PL 2633/2020, por exemplo, permite a regularização de terras públicas invadidas, considerando a inscrição autodeclaratória no Cadastro Ambiental Rural (CAR) como prova suficiente de regularidade ambiental. Além disso, desobriga imóveis de determinado tamanho a aderirem ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) ou a adotarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), quando houver embargo ou for constatada alguma infração ambiental. Já o PL 510/2020 prevê anistia a invasores e desmatadores ilegais até dezembro de 2014, flexibiliza vistorias de latifúndios, com risco de titulação de áreas em conflito, e permite titular área desmatada ilegalmente sem assinatura prévia de regularização de passivo ambiental. Os dois PLs, embora hoje tramitem em conjunto, foram iniciados em casas legislativas diferentes. O PL 2633/2020 foi iniciado e aprovado na Câmara, tendo seguido para o Senado, onde foi anexado, para tramitação conjunta, ao PL 510/2021, que é de iniciativa dos próprios senadores e conta hoje com 132 propostas de emendas apresentadas na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), na Comissão de Meio Ambiente (CMA) e no plenário. A CRA e a CMA já emitiram parecer conjunto favorável ao PL 510/2021 sob a alegação de que ele aprimora o ordenamento jurídico nacional. O PL 2633/2020 foi considerado prejudicado por similaridade ao PL 510/2021 e não por inoportunidade da proposição. O fato, portanto, de ser essa uma pauta comum à Câmara e ao Senado aumenta suas chances de aprovação.

O PL 3729/2004, por sua vez, altera radicalmente as regras para licenciamento ambiental. Generaliza o licenciamento autodeclaratório, cria a licença por adesão e compromisso (LAC), estabelece uma lista de atividades isentas de licenciamento (incluindo aí as atividades agropecuárias), confere maior autonomia aos estados na definição de empreendimentos sujeitos a licenciamento, limita o poder de decisão de órgãos gestores de unidades de conservação e exclui a necessidade de elaboração de estudos de impacto ambiental para empreendimentos adjacentes a TIs e quilombolas não homologados e titulados, dentre outras medidas. O resultado do projeto tende a ser a redução do sistema integral de licenciamento ambiental hoje praticado a uma exigência de exceção. O PL data de 2004, com sentido completamente diferente do texto hoje proposto, mas não foi adiante em nenhum dos governos desde então. Foi aprovado, na Câmara, em maio de 2021, sob a coordenação de Arthur Lira (PP). Aguarda aprovação no Senado sob o número 2159/2021, já tendo recebido 79 emendas e cerca de 15 manifestações formais de organizações não governamentais e associações com indicações de questões sensíveis e retrocessos. Será relatado pela senadora Kátia Abreu (MDB).

Já os PLs 490/2007 e 191/2021 afetam direta e negativamente as populações indígenas por assumirem a premissa racista, etnocêntrica e integracionista de que a demarcação e a proteção de suas terras são um entrave para o desenvolvimento nacional. O PL 490/2007, de iniciativa da Câmara e que tramita com mais 13 PLs a ele apensados, altera as regras para demarcação, consolidando a tese do marco temporal, segundo a qual a propriedade da terra pode ser garantida às populações indígenas apenas se comprovada uma ocupação de caráter permanente já quando da promulgação da Constituição de 1988. Além disso, o PL permite a exploração econômica dessas terras pelos próprios indígenas, mas também por parceiros não indígenas. Com isso, viabiliza o seu uso para construção de empreendimentos hidrelétricos e facilita a legalização da garimpagem, hoje ilegal. Os garimpos também são objeto do PL 191/2020, de iniciativa do Executivo, que busca regulamentar a atividade extrativa mineral e o desenvolvimento de pesquisas correlatas em TIs. Os dois PLs ainda não foram votados no plenário da Câmara. A expectativa de rejeição do PL 490/2007, no entanto, repousa mais sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) do que sobre o Congresso – o Supremo avalia a constitucionalidade da tese do marco temporal, a despeito da aprovação do projeto por duas das três comissões pelas quais tramitou na Câmara. Quanto ao PL 191/2020, embora haja sinalização de inconstitucionalidade pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e alerta da própria base aliada do governo de que a matéria exigiria mudança constitucional, há diversas manifestações favoráveis a seu conteúdo. O assunto, no entanto, permanece em disputa. Um levantamento do OLB, de julho de 2021, evidenciou que, desde o início de 2019, 146 proposições legislativas com menção a povos tradicionais foram movimentadas na Câmara. Partidos de centro-direita assinaram 43% dessas iniciativas. Ou seja, a pauta não foi exclusividade da esquerda ao longo da atual legislatura. Com a centro-direita mobilizada, há riscos de flexibilização de direitos e conquistas sob a égide do discurso econômico liberal.

Por fim, a tentativa de fazer avançar o PL 6299/2002 é um aceno generoso ao agronegócio por parte do governo e dos parlamentares. Apelidado de PL do veneno, o projeto é uma iniciativa do Senado, já aprovada na Casa. Na Câmara, que funcionou, nesse caso, como casa revisora, o projeto também foi aprovado, em regime de urgência, por ampla maioria agora no início de 2022, mas voltará ao Senado em função das emendas recebidas. Em linhas gerais, o PL 6299/2002 estabelece que o MAPA será o único órgão responsável por registrar agrotóxicos no Brasil, exclui a vedação legal vigente de registro de agrotóxicos comprovadamente nocivos à saúde, submete o registro dos “pesticidas” (e não mais agrotóxicos, pois tal nome carrega conotação pejorativa) à análise de fatores políticos e econômicos que possam justificá-lo e fixa prazo para obtenção do registro, permitindo, inclusive, a obtenção de um registro temporário. A pauta é cara à reeleição do presidente Bolsonaro, mas não só. Outro levantamento do OLB, de agosto de 2020, que se propôs a desenhar preliminarmente o mapa do agronegócio no Congresso, revelou a força desse segmento nas duas casas legislativas. Cerca de 50% dos deputados e senadores da atual legislatura compõem a FPA, que controla as comissões sobre os temas na Câmara e tem posições importantes em comissões correlatas no Senado. Além disso, no Senado, que será mais uma vez palco do debate sobre o assunto, 1 em 4 senadores eleitos em 2018 é proprietário rural.

Dado o favoritismo de Lula nas pesquisas eleitorais, o ímpeto legislativo do presidente para tratar desses PLs tende a crescer, por ser uma de suas estratégias à reeleição. Com isso, ele acena, de um lado, para os produtores de commodities agrícolas e minerais e fortalece, de outro, os laços já existentes com o seu eleitorado mais conservador. Para além dos votos, Bolsonaro vai buscar nesses setores apoio financeiro à sua campanha. Os parlamentares, em sua maioria, ao que tudo indica, também não devem oferecer resistência a essa pauta de devastação se o custo que lhes for imposto para aprová-la não impactar negativamente as suas chances de reeleição. A Câmara, no entanto, mais afetada por esse cálculo (dentre outras razões porque pode renovar, em outubro de 2022, 100% das suas cadeiras) já tratou de emitir posicionamento sobre a maior parte dos projetos citados. As luzes este ano, portanto, estarão voltadas para o Senado, mais refratário aos apelos do governo na atual legislatura, mas que tem número mais reduzido de cadeiras, o que, por si só, pode reduzir os custos gerais da negociação.

O primeiro semestre de 2022, desse modo, pode deixar em escombros o nosso ordenamento jurídico ambiental. Se assim for, deve ficar marcado como o período de maior retrocesso nessa agenda nas últimas três décadas. Para reversão desse quadro, as alternativas parecem limitadas: a opção por uma agenda mais concisa por parte do próprio Congresso, a decisão pela obstrução do processo legislativo por boa parte da oposição (alternativa tornada mais difícil pelas mudanças regimentais conduzidas pelo deputado Arthur Lira), e a pressão constante da sociedade civil nacional e internacional. Essas três alternativas, em tempos de coalizão governamental ampla e bem coordenada, seriam usualmente insuficientes para mudança do quadro que se avizinha. Não é esse, todavia, o tipo de arranjo político que marca a relação do Congresso com o governo, a despeito dos recursos que o governo pode mobilizar nessa direção. Além disso, em ano marcado por eleições nacionais, o apoio do Congresso ao governo tende a ser maior ou menor na dependência da expectativa de desempenho eleitoral do próprio presidente. Nesse contexto, uma estratégia combinada das alternativas supracitadas pode, eventualmente, bagunçar mais o cenário e transferir para 2023 o ônus da retomada de ao menos parte da discussão.

Compartilhe: