Postado por OLB em 15/02/21
João Feres Júnior, Debora Gershon, Fernando Meireles
A sub-representação dos negros na política brasileira é aguda. O OLB vem se debruçando sobre o assunto nos últimos anos, já tendo produzido dois boletins a respeito da sub-representação negra na Câmara dos Deputados: um dedicado à legislatura anterior 2015-2018, com avaliação da valência do comportamento e da intensidade de engajamento dos deputados federais em temas relativos à igualdade racial; e outro sobre a legislatura 2019-2022, que avaliou a representatividade dos negros em posições de liderança e seu desempenho comparativo em várias atividades legislativas. Os resultados evidenciam o tamanho do problema.
Na legislatura anterior, poucos foram os parlamentares que se engajaram em temas relevantes para a população negra. Ao contrário, havia um grupo majoritário levemente avesso à temática da igualdade racial. No ranking que produzimos, alguns grupos específicos destacaram-se na tramitação desse tipo de agenda: a) mulheres; b) negros; c) e deputados de menor escolaridade. Na atual legislatura, nossos achados também não revelaram avanços. Negros são sub-representados nas comissões permanentes de maior impacto sobre a atividade legislativa e na função de relatoria, que é uma das mais importantes no processo legislativo. Em termos de atividade individual (apresentação de projetos, requerimentos, emendas etc) seu desempenho é semelhante ou superior ao de pessoas autodeclaradas brancas. Em atividades mediadas por outros grupos da Câmara, participação de negros fica aquém do esperado, mesmo quando observado o tamanho de sua bancada.
Com o objetivo de aprofundar esse debate, especialmente em momento de novas eleições para postos de comando das casas do Congresso, o OLB analisou a produção legislativa da câmara baixa nos últimos dois anos (2019 e 2020), com foco na produção de parlamentares autodeclarados pretos e pardos/amarelos. Para identificar eventuais diferenças em termos de atividade e efetividade desses grupos dentro do parlamento, calculamos um indicador original de Efetividade Parlamentar (EP) e atribuímos notas aos deputados e deputadas em função do quanto conseguiram avançar suas propostas. Foram analisadas todas as 10.177 proposições apresentadas na Câmara dos Deputados desde 2019, considerados os seguintes tipos: Projetos de Lei (PL), Projetos de Lei Complementar (PLP) e Projetos de Emenda à Constituição (PEC). Os resultados, mais uma vez, são indicativos de que as diferenças raciais afetam o trabalho legislativo.
Nos anos de 2019 e 2020, 570 deputados e deputadas federais estiveram em exercício na Câmara. Pessoas autodeclaradas pretas e pardas são minoria nesse universo – mesmo quando observados esses dois grupos em conjunto. Somados, são 34,6% do total de parlamentares, enquanto representam 55% da população brasileira.
O volume de proposições apresentadas por cada grupo racial na Câmara é relativamente proporcional aos tamanhos de suas bancadas, mas há pequena sobrerrepresentação de brancos, que somam 75% das cadeiras, mas apresentam 79% dos projetos, além de leve sub-representação de pardos e pretos, que apresentaram cerca de 18 e 3% do total de matérias, respectivamente.
O dado para esses dois anos da legislatura traz pequena diferença com relação ao que apresentamos no último ano para a primeira sessão legislativa. Do ponto de vista da iniciativa de proposições, negros (pretos e pardos) têm atividade semelhante aos demais deputados da casa, embora, na média, seu desempenho tenha sido um pouco pior. A análise do número médio de proposições apresentadas por parlamentar, indicador mais adequado para comparar a atuação de bancadas partidárias de tamanhos bastante diferentes, revela que a média de proposições de iniciativa de brancos é de 20,2 enquanto a de proposições apresentadas por pessoas de cor preta é de 15,7. A título de ilustração, em 2019 pretos tinham média muito semelhante à de brancos, enquanto pardos tinham média maior.
Cabe mencionar que a redução da média de proposições iniciadas por negros em 2020 parece ter estreita relação com o grande volume de propostas apresentadas durante a pandemia da Covid-19. Esse aumento do número de propostas no ano passado deveu-se basicamente à atuação de parlamentares brancos, que são maioria na Câmara. Embora não tenhamos investigado profundamente as razões para isso, o melhor desempenho dos negros em atividades não mediadas por outros grupos políticos em 2019 sugere que o funcionamento remoto da casa pode ter constituído mecanismo de desincentivo à participação negra na produção legislativa. Isso porque, sem as comissões funcionando, a decisão sobre a agenda do plenário, usualmente centralizada na presidência da Mesa, além de considerar restrições temáticas impostas pela própria pandemia passou a levar formalmente em conta a posição do colégio de líderes, em que há 88% de brancos, 12% de pardos e nenhum autodeclarado preto.
Analisamos o investimento temático legislativo de diferentes grupos raciais a partir do exame dos temas das proposições por eles apresentadas. Há sobrerrepresentação de brancos, como indica a linha tracejada no gráfico a seguir, na maioria dos assuntos, mas há pontos importantes a serem notados. O tema “Agricultura e Pecuária” tem uma participação proporcionalmente maior de parlamentares autodeclarados brancos, os quais, por outro lado, preocupam-se menos em legislar sobre questões ambientais. “Meio Ambiente”, por sua vez, é tema prioritário para parlamentares negros, seguido por “Defesa e Segurança”.
Abaixo, reportamos também o percentual de proposições apresentadas em cada um dos temas selecionados por cor/raça dos parlamentares. Com essa informação, por exemplo, percebe-se que cerca de 22% de todas as proposições de autodeclarados pretos trata do tema “Direitos Humanos e Minorias”. Entre brancos e pardos, essa proporção é de 17%. De um modo geral, contudo, não há grandes diferenças em termos de engajamento temático entre os diferentes grupos raciais, à exceção de propostas sobre o meio ambiente, conforme anteriormente observado.
Apesar de muito semelhantes do ponto de vista do tema de que tratam, as proposições de parlamentares brancos e negros tramitam de forma diferente na Câmara. Abaixo, reportamos o percentual das proposições apresentadas que tiveram movimentações relevantes desde 2019 (votação em plenário ou recebimento de parecer em comissões). Embora sutis, as diferenças revelam menor celeridade na tramitação da agenda de parlamentares autodeclarados pretos. Seus projetos entram nas comissões em proporção semelhante à dos brancos, mas têm menos relatores designados e pareceres emitidos.
Para analisar esse dado de forma mais adequada, lançamos mão do indicador de Efetividade Legislativa, que atribui notas de 0 a 10 para as ações de determinado parlamentar ou grupo. Notas mais próximas de 10 indicam maior efetividade de sua ação legislativa. O gráfico abaixo revela que parlamentares autodeclarados pretos têm notas substantivamente menores, enquanto pardos e brancos se assemelham.
Os dados acima expostos corroboram os resultados que já obtivemos em outros estudos e confirmam que, para além da sub-representação numérica, há barreiras institucionais e políticas importantes a serem enfrentadas na Câmara por parlamentares negros, mas especialmente por aqueles que se autodeclaram pretos. O vigor de sua atividade legislativa individual, cujo padrão é semelhante à dos brancos, exceto para 2020 – ano marcado por uma série de desafios ao processo legislativo usual –, é incapaz de garantir que a produção desse grupo chegue a termo com a mesma velocidade empregada em propostas de outros grupos raciais.
O engajamento em temas específicos não parece ser fator explicativo do quadro apresentado. Ou seja, o recorte temático das propostas legislativas apresentadas por autodeclarados pretos não difere substantivamente daquele observado entre parlamentares brancos a ponto de justificar a tramitação mais lenta de sua agenda.
Cresce a cada dia a compreensão de que a sub-representação negra em casas legislativas tem impacto negativo expressivo sobre a capacidade estatal de reverter o cenário alarmante de desigualdade racial no Brasil. A análise da produção legislativa de pardos/amarelos e pretos revela a operação dessas desigualdades no seio do processo legislativo e o desafio de se garantir que os diferentes grupos representados na Câmara tenham condições equânimes para legislar.
Para elaborar este boletim, extraímos e sistematizamos uma série de dados do Portal de Dados Abertos da Câmara dos Deputados. Em particular, na análise de proposições apresentadas e aprovadas, utilizamos as ocorrências de proposições por data de apresentação, recorrendo também à classificação temática realizada pelo Setor de Documentação da casa. Unindo essas informações, conseguimos mapear a tramitação de todas as proposições apresentadas por deputados e deputadas desde fevereiro de 2019. Somado a esses dados, coletamos informações de autodeclaração racial dos parlamentares a partir do Repositório de Dados Eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral.
Para calcular o Índice de Efetividade, consideramos as tramitações de cada proposição avaliada, adaptando a metodologia já largamente utilizada na Ciência Política americana desenvolvida por Craig Volden e Alan Wiseman (para mais detalhes, ver o livro Legislative Effectiveness in the United States Congress). Para cada matéria, atribuímos um score de 10 caso tenha sido votada em plenário; de 4, caso tenha recebido ao menos um parecer em comissão; e, finalmente, de 1 caso tenha recebido ao menos uma designação de relator. Feito isso, calculamos a média da soma dos scores das proposições de cada parlamentar; transformamos a variável resultante em logaritmo natural e a normalizamos para o intervalo de 0 a 10, em que 0 indica o parlamentar menos efetivo ao levar suas proposições adiante no processo legislativo e, 10, o mais efetivo. Como a medida depende dos desempenhos máximo e mínimo atingidos na Câmara, o índice resultante é relacional, isto é, deve ser interpretado em termos comparativos entre dois ou mais parlamentares.