Postado por OLB em 08/01/21
Fernando Meireles e Debora Gershon
Marcado pela eclosão da pandemia da Covid-19, o ano de 2020 trouxe desafios políticos e institucionais importantes para os governos em seus diferentes níveis e para as casas legislativas, especialmente as federais. O executivo federal enfrentou diversas crises internas, com repetidas mudanças no Ministério da Saúde, saída do ex-Ministro Sérgio Moro do Ministério da Justiça, acirramento de críticas ao Ministério do Meio Ambiente, além de conflitos sucessivos entre a ala ideológica e a ala mais pragmática do Planalto, levando, inclusive, a divisões entre membros do governo oriundos das Forças Armadas. Houve ainda crise com o Supremo Tribunal Federal (STF), em virtude das manifestações contra o órgão convocadas com apoio do presidente, e avanço do conflito federativo, resultante de divergências no enfrentamento da pandemia. Sem capacidade de coordenar a crise decorrente da propagação da doença, Bolsonaro perdeu, durante meses, parte da sua bancada de apoio na Câmara e no Senado. O trabalho do governo no Congresso se concentrou no tratamento da situação de emergência pública declarada em fevereiro, com foco, principalmente, na abertura de créditos extraordinários e na formatação de auxílios emergenciais a empresas e a população. Coube ao Congresso, entretanto, a iniciativa de aumentar o valor do auxílio direto, que gerou grande impacto nos meses de maior isolamento social.
O Congresso, além da tarefa de lidar de forma ágil com a agenda emergencial imposta pela Covid-19, enfrentou também o desafio de instituir o trabalho remoto dos parlamentares. Para isso, reorganizou o processo legislativo de modo a manter sua capacidade de tomar decisões mesmo sem as sessões presenciais e o trabalho das comissões, tentando resguardar, em alguma medida, a efetiva participação parlamentar. A restrição à votação de matérias exclusivamente relacionadas à pandemia durante o funcionamento do Congresso Remoto foi uma das ações adotadas pelas duas casas para reduzir o impacto eventualmente negativo da virtualização da atividade parlamentar, embora a regra não tenha sido integralmente respeitada. De qualquer forma, a circunscrição da agenda a temas considerados urgentes foi incapaz de suprir a lacuna deixada pela interrupção do trabalho das comissões permanentes em termos de transparência, abertura social e acúmulo de informação. Soma-se a esse quadro adverso o fato de que 2020 foi um ano eleitoral. À agenda da pandemia, somou-se a necessidade de modificação da legislação que define as eleições no Brasil para adaptá-la às circunstâncias excepcionais.
Com o objetivo de melhor entender o papel do Congresso nesse ano conturbado, o Observatório do Legislativo Brasileiro analisou dados da Câmara dos Deputados, relativos a todas as proposições legislativas e votações nominais realizadas em 2020, em comparação com o ano de 2019. O resultado pode ser lido nos parágrafos seguintes, nas seções: a) perfil da produção legislativa; b) apoio ao governo e oposição; e c) comportamento das bancadas partidárias.
No início da pandemia de Covid-19 houve aumento bastante expressivo do volume de proposições apresentadas à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, em comparação com os meses anteriores. No cômputo geral, contudo, 4742 proposições foram apresentadas em 2020 contra 5624 em 2019. Por conta da pandemia, abril foi o mês de maior número de proposições apresentadas em 2020. Em 2019, o mês com mês de pico foi fevereiro, o que é comum no começo de novas legislaturas.
Para análise da evolução do perfil temático dessas proposições, nos debruçamos especificamente sobre três temas: “saúde”, “direitos humanos e minorias”, e “economia e finanças públicas”. Os três reúnem 97% das proposições apresentadas em 2020, em contraposição a 43% das apresentadas em 2019, o que indica a influência da crise do coronavírus na produção do ano. As agendas de saúde pública e fiscal, em particular, foram as duas com maior peso após o início da pandemia. No primeiro caso, há projetos diversos que tratam de medidas de deslocamento e aglomeração e equipamentos de proteção individual, entre outros, com pico nos meses de março, abril e maio. No segundo, enquadram-se projetos que discutiram auxílio emergencial, renda destinada à população mais vulnerável, auxílios fiscais, acesso a crédito e outros incentivos para empresas e empreendedores.
Vale notar que o tema “direitos humanos e minorias”, que cresceu, embora não substantivamente, durante a pandemia, sofreu decréscimo de importância ao longo de 2019, a despeito do valor da pauta de costumes para Jair Bolsonaro. Os meses de fevereiro, março e abril de 2019, de maior volume de produção sobre o tema, provavelmente refletiram as agendas de campanha do presidente e da extrema direita, que aos poucos, no entanto, foram perdendo fôlego. Em 2020, as proposições sobre essa temática foram, em geral, apresentadas por partidos da oposição, mas também pelo PSDB, em virtude da atuação do deputado Alexandre Frota (SP), que apresentou grande número de projetos sobre direitos das mulheres e de outros grupos política e socialmente minoritários.
Mantendo o padrão dos últimos anos, o número de proposições iniciadas na Câmara é maior do que o de iniciadas no Executivo.
Também tem sido maior, nos últimos anos, o número de proposições do Legislativo transformadas em norma jurídica, a despeito do fato de as proposições do Executivo terem, em geral, maior chance de aprovação. Com Bolsonaro, esse padrão não se alterou substantivamente ao menos até o início da pandemia, já que em 2019, por exemplo, o poder Legislativo foi responsável por introduzir cerca de 4/5 de todas as propostas que viraram lei naquele ano. Em 2020, entretanto, houve mudanças. O Executivo aumentou sua produção legislativa e aprovou cerca de 50% dela, na contramão do padrão observado desde o início de 2019. Até mais ou menos maio de 2020, a proporção de matérias de autoria da equipe de Bolsonaro aprovadas na Câmara não ultrapassava os 25%, sendo a pior dos últimos 20 anos, embora esse tenha sido o governo que apresentou mais proposições legislativas desde 2000.
Esse cenário é confirmado por outros dados de 2020, como o aumento na taxa de matérias apresentadas pelo Executivo e transformadas em norma exatamente no mesmo ano. No gráfico abaixo, observa-se que mesmo tendo apresentando menos proposições em 2020 do que em 2019, o Executivo Federal teve uma taxa de sucesso 3 vezes maior. Assim, apesar das crises políticas que marcaram 2020, o governo Bolsonaro manteve iniciativa legislativa durante a pandemia, ajudado pelo Congresso que votou e aprovou suas proposições.
O ano da pandemia e de funcionamento remoto do Congresso repetiu a tendência de polarização entre governo e oposição em votações nominais, com vantagem para o governo, que mantém apoio expressivo na Câmara. A distância entre situação e oposição, todavia, que já era considerável em 2019, cresceu ainda mais, deprimindo o centro político e deixando um fosso entre partidos à esquerda, cujas figuras mais oposicionistas encontram-se no PSOL e no PT, e partidos à direita, que têm entre seus expoentes membros do PSL e do PSC. O primeiro abrigou Bolsonaro quando de sua candidatura à presidência e vem mantendo fidelidade ao governo a despeito do rompimento do presidente com a legenda. O segundo compõe a base de apoio ideológica ao presidente desde o início de seu mandato.
O gráfico abaixo apresenta visualmente a distribuição das notas de governismo. Os picos indicam que há um número maior de parlamentares com a nota correspondente no eixo horizontal. As notas vão de 0 a 10, sendo 0 o máximo de oposição possível e 10 o inverso.
Com o objetivo de identificar grupos de parlamentares com características semelhantes, eventualmente mais próximos ao governo, também avaliamos se há grandes diferenças no comportamento daqueles que têm mais de um mandato em relação aos estreantes na Casa. Isso porque a renovação da Câmara em 2018 garantiu a eleição de várias pessoas sem experiência parlamentar, em sua maioria situadas à direita e à extrema-direita do espectro político-ideológico, que manifestaram apoio inconteste ao presidente quando de suas candidaturas. Era de se esperar que tendessem a ter notas de governismo maiores do que os deputados mais antigos. Não é o caso, no entanto. A polarização entre governo e oposição pode ser observada tanto no grupo de novatos quanto naquele que reúne os veteranos. A inclinação governista dominante é explicada pelo comportamento de partidos do Centrão, que parece ter aderido de forma mais sistemática ao governo durante o ano de 2020, liderados principalmente pelo PP.
De 2019 para 2020, caiu a diferença em termos de apoio ao governo entre partidos do Centrão e outros mais à direita. Em 2020, PSL, PL e PP foram os partidos mais fiéis ao governo, seguindo a agenda da maioria – vale ressaltar que o PP terá candidato à presidência da Câmara, Deputado Arthur Lira, com o aval de Bolsonaro. Há, portanto, aumento da polarização à direita, conforme já visto anteriormente, e diluição do centro, em virtude da distância de cerca de 2 pontos que separa o partido menos governista do bloco majoritário (Cidadania) do partido menos oposicionista do grupo minoritário (PV).
Do MDB ao PSL, as notas de governismo foram bastante similares. Diferentemente do ano anterior, no entanto, o Novo teve posições menos consistentes, com intervalo de confiança maior para estimativa de sua nota, embora permaneça à direita do campo político na Câmara.
A oposição, por sua vez, esteve menos coesa em 2020. Partidos opositores a Bolsonaro votaram favoravelmente ao governo em diversas situações, especialmente em proposições relacionadas à pandemia da Covid-19, como já era de se esperar. PT e PSOL foram as bancadas mais opositoras, um pouco distantes de PSB e PDT. A maior maleabilidade de parlamentares desses dois partidos em negociar com o governo, portanto, justifica os acenos feitos a eles por Arthur Lira, em busca de apoio à sua eleição. Nesse grupo minoritário e oposicionista, REDE e PCdoB apresentaram comportamento intermediário entre PT-PSOL e PSB-PDT.
É importante notar que as posições médias dos partidos no ranking de governismo escondem divergências internas às bancadas. Em partidos como PT e MDB, por exemplo, os parlamentares tiveram notas mais similares entre si. Por outro lado, partidos como Rede e Avante abrigaram diferentes posições pró e contra o governo em diversas votações, com a ressalva de que a Rede tem uma bancada extremamente pequena. Consenso e disciplina em cada partido serão analisados mais detidamente na próxima seção.
Embora o governo conte hoje com o apoio da maior parte dos partidos da Câmara, em alguns houve divisões nítidas ao longo do ano, a exemplo do Avante, conforme se observa nos gráficos a seguir. Por outro lado, outras agremiações destacam-se pelo maior grau de consenso nas suas bancadas, como é o caso de Rede, Novo, PCdoB, PT e PSOL.
Para chegar a essas conclusões, calculamos o Índice de Rice, que permite mensurar o grau de consenso dentro de cada bancada nas votações, atribuindo pontuações de 0 a 1 às legendas (1 indicando que todos os parlamentares da bancada sempre convergiram e 0 que a bancada foi dividida ao meio em todas as votações). Adicionalmente, calculamos a média da disciplina individual em relação às orientações das lideranças. O indicador nos ajuda a verificar a proporção de vezes, em média, que os membros de uma legenda seguiram as indicações de seus líderes. Em termos de disciplina partidária, PT, PCdoB, PSOL, NOVO e PL estão à frente dos demais, atingindo alto grau nesse quesito.
Vale notar que, nos meses seguintes ao início da pandemia, houve diminuição da média da taxa de consenso das diferentes bancadas da Câmara e menor disciplina nos partidos, com recuperação posterior, embora gradativa, dos níveis anteriormente alcançados. Essa variação é provavelmente fruto das crises políticas que marcaram o início da pandemia e da consequente dificuldade de se formar uma maioria em torno das ações descoordenadas do governo federal. Esse efeito pode ser observado no gráfico abaixo.
O Congresso Nacional em 2020 foi muito afetado pela pandemia e pelos efeitos singulares que ela causou na vida política do país, o que resultou em mudanças nos procedimentos, na agenda, na relação entre Executivo e Legislativo e no próprio padrão de relacionamento entre os partidos dentro da Câmara. Entretanto, mesmo diante de uma série de adversidades, traços de continuidade em temas importantes podem ser observados.
Sobre as mudanças, destacamos, em primeiro lugar, a virada de agenda: em 2020 prevaleceram os temas “saúde” e, secundariamente, “economia”, na expectativa de criação de regras e mecanismos de redução de uma crise que apenas se inicia no Brasil, como consequência direta da Covid-19. Em segundo lugar, o ano foi de crise política, que teve reflexo, ainda que de forma temporária, na taxa de coesão das bancadas partidárias. No entanto, e em terceiro lugar, 2020 também foi o ano em que o governo Bolsonaro cedeu à necessidade de formação de uma maioria legislativa, tendo se aproximado do Centrão e alcançado uma bancada de apoio mais consistente e estável na Câmara. O fato pode soar contraditório, se observados a falta de liderança governamental para lidar com a pandemia e os revezes sofridos por Bolsonaro no Congresso e no STF, mas as crises deste ano também foram fator decisivo para uma mudança na articulação do governo. Não há muita clareza sobre a persistência dessa nova direção, mas o fato rendeu frutos ao Executivo, em termos de apoio, especialmente no segundo semestre.
A montanha russa de acontecimentos em 2020, no entanto, não elimina traços importantes de continuidade. A Câmara mantém protagonismo crescente na agenda legislativa, mesmo com o aumento da taxa de sucesso do Executivo em relação a 2019 e com a redução típica do número de proposições em ano eleitoral. O Executivo mostrou certo vigor na apresentação de projetos relativos à pandemia, mas mantém-se tímido no que toca ao avanço em outras pautas.
O trabalho do legislativo foi fundamental para manter o sistema de freios e contrapesos brasileiro e aprovar matérias urgentes e relevantes para o atendimento de diferentes e amplos grupos afetados pela crise do coronavírus. Contudo, aumentou a distância entre parlamentares e organizações da sociedade civil no processo de produção de políticas públicas. Há indícios de que o Congresso vá introduzir na sua rotina pós pandemia algumas das atividades remotas ora experimentadas. Se esse for o caso, deve-se ter atenção ao fato de que a tecnologia pode tanto ser usada para aprimorar a representação política, quanto para acelerar decisões sem a transparência e a participação exigidas e necessárias ao sistema democrático.
Para elaborar este boletim, extraímos e sistematizamos uma série de dados do Portal de Dados Abertos da Câmara dos Deputados. Em particular, na análise de proposições apresentadas e aprovadas, utilizamos as ocorrências de proposições por data de apresentação, recorrendo também à classificação temática realizada pelo Setor de Documentação da casa. Unindo essas informações, conseguimos mapear quantas proposições foram apresentadas por mês ou ano, quem as apresentou (i.e., se Poder Executivo ou Poder Legislativo) e sobre quais temas discorriam. Para distinguir entre proposições transformadas em norma jurídica, usamos dados de proposições apresentadas desde 1940 e filtramos apenas as que tiveram como situação final a rubrica “Transformada em Norma Jurídica” entre 2000 e 2020.
Seguindo outro ranking de governismo na Câmara dos Deputados produzido pelo OLB no passado, coletamos informações sobre todas as votações nominais, quando parlamentares têm seus votos registrados em plenário, ao longo do ano de 2020. Em uma segunda etapa, excluímos votações que não tiveram conflito, isto é, votações nas quais não houve sequer 2% de parlamentares que votaram contrários à maioria vencedora – procedimento comum para evitar que votações unânimes entrem no cômputo do governismo. Ao final, a amostra que analisamos contém 248 e votações na Câmara.
Com os dados organizados, implementamos o algoritmo OC (Optimal Classification), que extrai dimensões latentes a partir dos dados de votação – e que, diferente de outro algoritmo comum, o W-nominate, não assume pressupostos rígidos sobre as preferências dos e das parlamentares. Nesse processo, o algoritmo encontra quais dimensões explicam a maior parte da variação nos resultados das votações. Em nossa aplicação, utilizamos a dimensão com maior poder explicativo, a qual interpretamos, com base em em testes adicionais, como sendo governo-oposição. Parlamentares com padrões de votação similares receberam scores similares, enquanto outros com históricos de votos divergentes foram posicionados com maior distância. Para facilitar a exibição dos resultados, transformamos os scores do w-nominate para o intervalo de 0 a 10.
Para mais detalhes sobre a metodologia, ver Congress: A Political-Economic History of Roll Call Voting, escrito pelos cientistas políticos americanos Keith Poole e Howard Rosenthal.