Câmara dos Deputados no Brasil: uma história de sub-representação das mulheres

Postado por OLB em 08/03/20

Apresentação

Nas eleições de 2018, 77 mulheres foram eleitas para a Câmara dos Deputados, ou 15% do total. O número baixo representa uma melhora com relação à história do país, tendo em vista que, desde 1933 – primeiro ano de uma mulher na Câmara –, esse percentual não ultrapassou 10%. Ainda assim, é inegável o quadro de profunda dominância masculina na Casa, o que deixa o Brasil bem abaixo da média de representação de mulheres nas câmaras federais de países da América Latina e Caribe, de cerca de 30%. A sub-representação feminina na história da Câmara dos Deputados no Brasil é evidente no número de cadeiras ocupadas, mas também em outras diversas dimensões da vida parlamentar.

Com o objetivo de identificar e analisar a posição das mulheres na nossa câmara baixa, o Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) coletou e analisou um conjunto de dados e informações sobre o Congresso Nacional. O resultado é um painel detalhado sobre a participação política da mulher, que nos ajuda a entender os entraves micro institucionais que continuam a dificultar a atuação de mulheres na política, mesmo após as eleições.

(Sub)Representação das mulheres na história da Câmara

Ao longo da maior parte da história da Câmara dos Deputados, apenas homens exerceram o mandato de Deputado Federal. Mulheres puderam votar e ser votadas a partir de 1932, mas isso não lhes garantiu representação equitativa. Desde 1826, 7.333 homens exerceram mandato na Câmara, contra 266 mulheres.* Em meados da década de 1990, foi criada a primeira iniciativa com o objetivo de mitigar essa desigualdade: partidos e coligações foram obrigados a reservar 30% de suas vagas para candidaturas femininas. A norma não teve efeito prático imediato e somente a partir de 2009 é que eles de fato passaram a efetivamente cumprí-la. Em 2018, mais uma ação importante foi realizada na direção de garantir maior representatividade feminina na política: o STF e o TSE garantiram recursos às candidatas, por meio da exigência de que fossem alocados em suas candidaturas pelo menos 30% dos fundos partidário e eleitoral e do tempo de propaganda política. Isso parece ter efetivamente contribuído para o pequeno avanço verificado nas últimas eleições.

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Vencida a barreira da eleição, as mulheres também enfrentam mais dificuldades do que os homens para permanecerem na Câmara. Desde 1990, os tempos médios de mandato de homens e mulheres chegaram a se equipar, mas antes disso as carreiras das mulheres eram quase 40% mais curtas do que as carreiras masculinas, o que pode sugerir dificuldade de repetição da vitória nas urnas e/ou a existência de barreiras à própria re-apresentação de candidaturas femininas.

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Homens controlam cargos estratégicos

Para além das barreiras eleitorais à representação das mulheres, verificamos também desigualdade aguda na própria composição dos postos de comando da Câmara. Desde 1999**, apenas quatro mulheres ocuparam assentos na Mesa Diretora – instância colegiada responsável pela condução dos trabalhos legislativos. Isso representa 1,5% de todas as deputadas federais do Brasil. Antes de 1999, nenhuma havia assumido essa função. A Câmara, além disso, jamais foi presidida por uma mulher.

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O quadro é semelhante quando observadas as comissões permanentes. A sub-representação numérica das mulheres está expressa no fato de que elas somam apenas 10% do total de presidentes dos últimos 20 anos. Ressalta-se que o aumento da proporção de mulheres eleitas em 2018 não implicou em aumento correlato do número de presidências de comissões ocupadas.

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Ademais, são reservadas às mulheres a presidência de comissões mais específicas e com menor amplitude de competências, à exemplo da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER). São nessas comissões, geralmente associadas às temáticas sociais e culturais, que as mulheres também se concentram como membros. Nas duas principais comissões da Casa – a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) e a Comissão de Finanças e Tributação (CFT) – a proporção de participação feminina é inferior à 10%. Mulheres nunca assumiram a presidência de nenhuma dessas duas comissões.

O quadro não passou despercebido pelas parlamentares. Em 2006, a Deputada Luiza Erundina apresentou, na Câmara, uma PEC (590/2006) que pretendia assegurar ao menos uma vaga para deputadas na Mesa Diretora das duas casas legislativas, bem como em todas comissões. A iniciativa foi aprovada pela Câmara, mas sequer foi à votação no Senado.

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O controle masculino das posições estratégicas na Câmara também se manifesta nos pareceres emitidos. A relatoria de um projeto é de extrema importância no processo legislativo, motivo pelo qual a designação de relatores está no centro da disputa entre partidos e coalizões. Por meio da emissão de um parecer, o relator(a) subsidia e informa outros parlamentares acerca dos propósitos e riscos de uma dada proposição, influenciando sobremaneira o resultado da votação. Em alguns casos – como na tramitação da Reforma da Previdência – a emissão de um parecer funciona como um holofote sobre o mandato.

Mais uma vez, aqui, a distribuição de pareceres às mulheres é proporcional ao tamanho de sua bancada, mantido o padrão desigual de sua representação. De todos os pareceres emitidos na Câmara desde 2001, pouco mais de 10 mil (12%) foram produzidos por mulheres.

Proposições das mulheres: maiores chances de aprovação

A baixa presença das mulheres na Câmara, naturalmente, também se reflete na quantidade de projetos por elas apresentados. Nos últimos 20 anos, cerca de 90% do total dos projetos encaminhados à Mesa é de autoria masculina, a despeito do fato de que as mulheres não se diferenciam dos homens no que se refere à média de projetos que apresentam – ao contrário, a média per capita de projetos de autoria feminina é um pouco maior, (6.1 por ano, contra 5.9 de projetos apresentados por homens). Ou seja, esse quadro é resultado direto do número desigual de deputadas e deputados.

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Ainda assim, a despeito da sub-representação numérica, nossos dados indicam que um projeto de autoria feminina tem probabilidade maior de aprovação do que um projeto de iniciativa masculina – 2% contra 1,5%. Em outras palavras, as chances de uma deputada aprovar um projeto seu são 33% maiores quando comparadas às chances de um deputado ter seu projeto aprovado. Os dados levantados não são suficientes para explicar a razão dessa maior eficiência. Uma investigação de maior fôlego deve levar em conta decisões estratégicas das deputadas, seu engajamento para aprovação de seus projetos – considerando-se inclusive que elas têm maior presença em plenário do que os homens (77% contra 73%) – e os temas sobre o qual legislam, dentre outros fatores possíveis, que permitam conhecer melhor o lugar ocupado pela bancada feminina na Câmara.

Mulheres gastam mais com formação

O trabalho de um parlamentar é, em grande medida, viabilizado pelos recursos de que ele dispõe. Uma das principais fontes de financiamento dos gabinetes na Câmara é a Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP) – uma cota única mensal, cujo valor máximo varia conforme preços da unidade da federação, destinada exclusivamente a gastos relacionados à atividade legislativa, como o próprio nome já diz.

Analisar o bom uso da verba por cada parlamentar, portanto, depende da avaliação do perfil de cada deputado(a), da natureza de sua produção, bem como do tipo de relação estabelecida com sua base eleitoral. Não é este aqui o nosso propósito. De qualquer forma, comparar dados gerais nos permite identificar algumas prioridades dos mandatos. Nos últimos 10 anos, mulheres gastaram em média, em um ano, cerca de R$ 8 mil reais a mais do que os homens, e essa diferença se justifica quase que exclusivamente pelo investimento que elas fazem em formação.

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Mulheres gastam mais do que o dobro de recursos com custeio de sua participação em cursos, palestras e eventos similares, conforme se observa no gráfico abaixo, devendo-se ressaltar que o reembolso deste tipo de gasto requer que os parlamentares não faltem sessões de plenário, nem reuniões das comissões a que pertencem. Os homens, por sua vez, gastam mais do que as mulheres em praticamente todos os demais itens de despesa que podem ser enquadrados no uso da cota parlamentar.

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Conclusão

A sub-representação da mulher na Câmara, que tem no seu centro o baixo número de assentos que elas ocupam, se espalha por praticamente todas as dimensões da vida parlamentar, incluindo a ocupação de postos-chave no processo legislativo como a presidência, a Mesa Diretora e a presidência e relatoria de comissões. A casa parece ser incapaz de corrigir essa distorção por meio de seu regramento interno, além de não ter poder para interferir diretamente no resultado produzido pelo processo eleitoral, que é altamente desigual. As atividades que envolvem intermediação/apoio de partidos e lideranças ou mantêm ou aprofundam a desigualdade já expressa pelo número de assentos conquistados. Nossos dados são um pouco mais animadores quando se observa a probabilidade de uma mulher aprovar proposição de sua autoria, mas eles ainda não nos permitem formular uma explicação.

A solução para desigualdade tão complexa deve incluir não somente a criação de regras internas de promoção da igualdade de gênero no parlamento como também regulação do processo político-eleitoral a fim de impedir que as mulheres sejam vitimadas por discriminações. Uma coisa é certa, a sub-representação de mulheres em espaços de poder tem reflexo profundo sobre a natureza e o conteúdo das políticas públicas que regulam nossa vida coletiva.

Metodologia

Para elaborar este relatório, coletamos um conjunto de informações sobre a atividade legislativa na Câmara dos Deputados. Os dados que utilizamos foram extraídos do Portal de Dados Abertos da Câmara dos Deputados e processados pela equipe de pesquisadores do OLB. Para calcular as estatísticas descritivas que reportamos nos gráficos, utilizamos o ambiente de programação estatístico R[R version 3.6.0 (2019-04-26)]. Em todas as análises, retrocedemos no tempo o quanto os dados disponibilizados nos permitiram – em cada gráfico, indicamos os períodos abarcados. Em todas as análises que envolvem valores em reais, as quantias reportadas foram corrigidas pelo IPCA de janeiro de 2020.

  • Os números desconsideram reeleição, isto é, cada pessoa foi contada apenas uma vez.

** Ao longo do texto, analisamos períodos de tempo diferentes em função da disponibilidade de dados sobre a atuação parlamentar no Repositório de Dados Abertos da Câmara. Para mais detalhes sobre a metodologia, ver a última seção.

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