Ciências Sociais Articuladas – A produção legislativa do Congresso sobre povos tradicionais

Postado por OLB em 21/07/21

1. Apresentação

O governo de Jair Bolsonaro é hostil aos povos tradicionais do Brasil. A política federal para índios e quilombolas foi anunciada já no início da campanha eleitoral do presidente: flexibilizar as regras de demarcação de terras em favor da expansão do agronegócio e da mineração, a partir de uma narrativa racista, etnocêntrica e integracionista, que representa um enorme retrocesso com relação aos compromissos assumidos a partir da Constituição de 1988.

De 2019 para cá, muitas foram as ações empenhadas pelo governo federal com o objetivo de desmontar o arcabouço institucional construído após a ditadura militar, responsável por reconhecer o direito originário à terra ocupada pelas populações tradicionais, bem como suas diferentes formas de organização social.

No seu primeiro dia de mandato, Bolsonaro editou uma Medida Provisória para transferir a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, delegando ao último a tarefa de demarcação de terras indígenas e quilombolas, até então sob a alçada da Funai e do INCRA, respectivamente. A iniciativa foi barrada pelo Congresso Nacional, que emendou a medida. Nova tentativa foi feita em junho do mesmo ano, dessa vez interditada pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, Bolsonaro nomeou para a Funai um presidente próximo aos ruralistas, Marcelo Xavier, alinhado com o argumento de que os direitos das populações tradicionais constituem na verdade “privilégios”. Para Fundação Palmares, o nome escolhido, Sérgio Camargo, protagoniza ataques ao Movimento Negro e às religiões de matriz africana desde sua posse, em novembro de 2019. Como resultado da adoção desse novo “paradigma” de governo, houve paralisação das demarcações de terras e intensificação dos conflitos territoriais.

No último dia 23, uma ofensiva de grandes proporções foi feita pela Câmara dos Deputados contra os povos indígenas, sob a liderança de Bia Kicis (PSL), presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e uma das aliadas mais fervorosas do presidente. O projeto de lei (PL) 490/2007, que desde 2007 não contava com uma coalizão favorável à sua aprovação, altera as regras para demarcação de terras, garantindo o direito de propriedade aos indígenas apenas se comprovada que a ocupação do território na data da promulgação da Constituição de 1988, sem interrupção. Além disso, o PL permite a exploração econômica das terras por indígenas e parceiros não indígenas e assegura a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal sem prévia consulta às comunidades. O projeto vai à votação no plenário da Câmara antes de seguir para o Senado. Se aprovado, submeterá à população indígena a todo tipo de violência – física, material e simbólica – agravando o quadro atual de devastação provocado pelas queimadas e pela ação e omissão deliberadas do governo federal. O Brasil foi, inclusive, apontado pela primeira vez, pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, como país sob risco de genocídio da população indígena.

O sentido das ações destinadas aos quilombolas não é diferente. A Fundação Palmares paralisou suas atividades de certificação de comunidades quilombolas – primeiro passo para a demarcação de suas terras. Pesquisas indicam que o reconhecimento da existência dessas comunidades caiu pela metade no governo Bolsonaro. Essa insegurança territorial tem impacto profundo sobre a capacidade de acesso a políticas públicas por parte dessa população e, portanto, sobre as suas condições de subsistência e sobrevivência, já precarizadas pela própria pandemia.

Se não há dúvida com relação à natureza da agenda governamental sobre o assunto, há uma mudança significativa de conjuntura em 2021, que impõe atenção redobrada à tramitação de projetos com impacto sobre indígenas e quilombolas nos próximos meses. Em fevereiro, o aliado de Jair Bolsonaro, Arthur Lira (PP), assumiu a presidência da Câmara, prometendo priorizar assuntos do governo e dar vazão aos interesses mais conservadores presentes no Congresso, que muitas vezes enfrentavam a oposição de Rodrigo Maia (DEM), presidente da casa nos dois primeiros anos da atual legislatura. A recente tramitação do PL 490/2007 é indício de que pode haver aumento do ímpeto para movimentar essa pauta no Congresso antes das eleições.

Com o objetivo de melhor desvendar esses assuntos, o Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) identificou e analisou todas as proposições relacionadas a eles que foram movimentadas na Câmara desde o início desta legislatura, bem como os discursos de plenário de deputados e deputadas federais que fizeram algum tipo de menção ao tema. Para verificar se o conjunto das proposições movimentadas tem características distintas daquelas que foram efetivamente apresentadas pelos(as) parlamentares eleitos em 2018, separamos os dados em dois subconjuntos: a) todas as proposições nos assuntos relevantes movimentadas/tramitadas[1] entre 2019 e 2021; e b) proposições movimentadas entre 2019 e 2021 que tenham sido apresentadas efetivamente nesse período e não em anos anteriores. Os resultados são analisados a seguir.

2. Tamanho da pauta e comportamento partidário

De 2019 a 2021, 146 proposições legislativas com menção a povos tradicionais foram movimentadas na Câmara, 46% das quais (67) apresentadas na atual legislatura e 54% iniciadas entre 1991 e 2018, a exemplo do PL 490, que, apesar de votado na CCJC em junho de 2021, foi apresentado há 14 anos atrás. Desse total, apenas 11 proposições são de autoria do Senado. As demais foram apresentadas por deputados e deputadas federais.

Gráfico 1. Ano de apresentação das propostas sobre povos indígenas e tradicionais

Os partidos do campo da esquerda (PT, PSB e PSOL) são aqueles que reúnem o maior número de parlamentares autores dessas proposições. Na legislatura atual, esses três partidos também foram os que mais se destacaram, seguidos pelo PDT e pela Rede. Quando, no entanto, dividimos a Câmara em dois conjuntos mais amplos de partidos, de centro-esquerda e centro-direita, notamos que 43% dos autores pertencem a partidos da centro-direita. Ou seja, o tema não é exclusivo da esquerda, sendo disputado por legendas ideologicamente distintas, o que pode sinalizar maior risco à flexibilização de direitos conquistados ao longo de mais de 30 anos de vida democrática no país. Vale ressaltar que a presença da centro-esquerda cresce quando observados apenas os projetos iniciados nos anos de 2019 e 2020 (74%) – retrato, provavelmente, do grande número de medidas propostas para enfrentamento à pandemia e, possivelmente, de uma postura defensiva em relação à agenda do atual executivo.

Gráfico 2. Total de propostas movimentadas por sigla dos deputados

Gráfico 3. Total de propostas apresentadas por sigla dos deputados

Para avaliação da temperatura do debate em torno de temas relativos aos povos tradicionais, também analisamos os discursos proferidos na Câmara em oportunidades e espaços institucionais distintos entre 2019 e 2021. Ao todo, foram 678 registros de menção ao tema, entre homenagens, discursos de pequeno e grande expedientes, breves comunicações, encaminhamentos de votações e exposições das lideranças partidárias, entre outros. Tendo em vista a importância e o peso dos discursos de líderes partidários na condução da Casa, primeiramente nos concentramos em identificá-los. Foram 95 dos 678. É bom lembrar que está regimentalmente assegurado que os líderes partidários, além dos líderes do governo, da Maioria e da Minoria, façam uso da palavra por período de tempo proporcional ao número de membros das suas respectivas bancadas em determinada fase de qualquer sessão ordinária da Câmara. No total de manifestações, os partidos da centro-esquerda novamente assumem destaque – particularmente o PT, a Rede e o PSOL, conforme demonstrado no gráfico abaixo.

Gráfico 4. discursos de líderes sobre povos indígenas e tradicionais.

3. A dimensão regional do debate

De acordo com os dados que levantamos, as proposições movimentadas no período foram iniciadas por parlamentares distribuídos nos 26 estados da federação, além do Distrito Federal. São Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais se sobressaem tanto no conjunto total de proposições quanto no subconjunto das proposições movimentadas de autoria dos parlamentares eleitos em 2018. É importante ressaltar que São Paulo e Minas Gerais são os dois estados com maior representação na Câmara, 70 e 53 cadeiras, respectivamente, embora o Sudeste seja a região com menor proporção de população indígena no Brasil. Mato Grosso, por sua vez, conta com apenas 8 deputados(as) na Casa, mas concentra 56% da população indígena do Centro-Oeste, que é a terceira região brasileira em termos de distribuição espacial dos indígenas segundo o Censo de 2010, atrás de Norte e Nordeste.

É importante ressaltar que os projetos movimentados e iniciados efetivamente na atual legislatura revelam desempenho também relevante de parlamentares que representam o estado de Pernambuco. Inversamente, apenas 9 autorias do total de proposições movimentadas entre 2019 e 2021 couberam a parlamentares do Amazonas, estado com maior proporção de índios no Brasil. Mato Grosso e Amazonas fazem parte da área definida pelo governo como Amazônia Legal, que conta com outros 7 estados do entorno. Os 9 estados juntos foram responsáveis por 31% das assinaturas das proposições que a Câmara optou por movimentar de 2019 para cá.

Gráfico 5. Total de propostas movimentadas por UF dos deputados

Gráfico 6. Total de propostas apresentadas por UF dos deputados

Dos líderes partidários que discursaram sobre povos tradicionais, destacam-se os originários de Roraima, São Paulo e Rio de Janeiro. Dos 95 discursos nos últimos 2 anos, 43% foram feitos por representantes dos estados que compõem a Amazônia Legal.

Gráfico 7. Discursos de líderes sobre povos indígenas e tradicionais

4. Estágio atual das proposições movimentadas pela Câmara

A maior parte das 146 proposições movimentadas tramita em conjunto com outras proposições e o apensamento desses projetos, ou seja, o ato de fazê-los tramitar pela Câmara conjuntamente, foi uma das ações desempenhadas prioritariamente na atual legislatura. Houve arquivamento de 30 proposições e somente 4 foram transformadas em norma jurídica. Vale observar que há 12 proposições Prontas para Pauta, que, portanto, já receberam pareceres das comissões de mérito e/ou tramitam em regime de urgência.

Gráfico 8. Estágio das proposições sobre povos indígenas e tradicionais

5. Ênfases das propostas movimentadas na atual legislatura (nuvens de palavras)

Com o objetivo de entender os microtópicos das proposições legislativas movimentadas, rodamos nuvens de palavras com base nas palavras-chave indexadas pela Câmara em cada proposição. Fizemos isso, igualmente, para os dois conjuntos de informação em análise – total de proposições movimentadas e proposições movimentadas iniciadas na legislatura 2019-2022.

No primeiro caso (gráfico 7), notamos a proeminência das palavras “fundo” e “terra”. No segundo (gráfico 8), as palavras “universidade”, “alteração (de lei)”, “educação”, “saúde”, “coronavírus” ganham destaque, em alinhamento à mudança de natureza dos projetos, fruto provavelmente da necessidade de enfrentamento à pandemia. Apesar disso, o controle de territórios é prioridade da Câmara nos dois casos.

Gráfico 9. Palavras do total de proposições tramitadas

Gráfico 10. Palavras de proposições iniciadas na atual legislatura

6. Pontos de destaque

  • É grande o número de matérias sobre povos tradicionais movimentadas pela Câmara na atual legislatura. Foram 146 no período analisado. De 2005 para cá, houve pequeno crescimento do número de proposições legislativas sobre o tema apresentado ano a ano, com destaque para os anos de 2015, e fundamentalmente, 2020. A necessidade de proteção dessa população durante a pandemia pode ser uma explicação para o volume de matérias iniciadas no último ano. Outra possibilidade é a tentativa de proteção de povos indígenas e quilombolas pela via legislativa, diante do avanço da agenda de retrocessos de Jair Bolsonaro.
  • As regiões e estados de maior população indígena não correspondem às bancadas de maior ativismo parlamentar no tema. Isso é indicativo da provável combinação dos seguintes fatores: a) os partidos mais identificados com a causa ambiental tem desempenho pior no Centro-Oeste e no Norte em comparação ao restante do país; b) os movimentos indígenas e sociais têm menor capacidade de inserção institucional nessas regiões, o que pode ser consequência de problemas de organização e, principalmente, de violência política.
  • O tema relativo aos direitos de povos indígenas e quilombolas não é exclusividade da esquerda. Se por um lado isso pode ser considerado algo positivo, indicando uma interlocução mais ampla no espectro político, por outro pode ser sinal de que partidos conservadores identificam no tema um obstáculo ao avanço de suas agendas.
  • Apesar do grande volume de proposições tramitadas, poucas foram transformadas em lei. Uma característica do tema é que muitas das proposições tratam de assunto idêntico/correlato, motivo pelo qual é alta a proporção de apensamento, ou seja, de projetos tramitando conjuntamente.
  • Do ponto de vista microtemático, observa-se que grande parte das proposições trata fundamentalmente da terra e, provavelmente, dos conflitos em torno dela e, de forma secundária, mas não menos importante, do manejo de recursos públicos.

Ressaltamos que a análise feita neste boletim é de caráter preliminar e tem por fim identificar os aspectos mais gerais do cenário. Esforços futuros de aprofundamento no tema devem incluir a identificação das valências das propostas assim como outros microtemas pertinentes, entre outros detalhes.

[1] Proposição movimentada/tramitada refere-se a toda e qualquer proposição, apresentada por deputado ou senador, que tenha tido algum tipo de andamento na Câmara no período em análise. Exemplo: despacho da Mesa Diretora, designação de relator, despacho de uma comissão para outra, recebimento de emenda, votação, arquivamento etc.

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