Ciências Sociais Articuladas – O que esperar da reforma administrativa?

Postado por OLB em 26/06/21

1. Apresentação

Em setembro de 2020, o governo encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de reforma administrativa via emenda constitucional (a PEC 32/2020), fruto das mudanças pretendidas pela equipe econômica na forma de organização de atividades de Estado. Apesar de ser uma das promessas do Ministro Paulo Guedes desde o início do mandato do presidente Bolsonaro, apenas ao fim do segundo ano de governo ela foi enviada à Câmara, permanecendo sem movimentação ou destaque entre os parlamentares até recentemente. Isso se explica por algumas razões: a desarticulação e os conflitos internos ao Planalto; a priorização pelo Congresso, em 2020, de uma agenda legislativa de enfrentamento à pandemia de Covid-19; e, mais importante, a eleição de Arthur Lira (PP) para a presidência da Câmara dos Deputados. Ainda que o ex-presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM), manifestasse apoio a essa pauta do governo, a liderança do atual presidente é sem dúvida mais alinhada ao governo e à sua agenda, especialmente após diversas concessões feitas ao Centrão quando da definição do orçamento de 2021.

A reforma almejada pelo governo tem impacto profundo sobre os servidores e a prestação dos serviços públicos. Com parecer de admissibilidade aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara em 25 de maio, a proposta seguirá para a análise de uma Comissão Especial antes de ser votada no plenário e posteriormente encaminhada ao Senado. Entender a sua natureza, os seus efeitos e o comportamento dos deputados até então é tarefa importante para antecipar posições de plenário na Câmara, bem como possibilidades de avanços e retrocessos no Senado.

Este relatório divide-se nas seguintes seções, além desta apresentação.

  • A PEC 32/2020, que descreve as principais mudanças propostas.
  • Efeitos da reforma e potenciais consequências.
  • Movimentação no Congresso, que trata do rito de tramitação da PEC e de seu estágio atual.
  • Comportamento retórico dos deputados, que analisa 196 discursos proferidos sobre o tema desde início de setembro de 2020, quando do encaminhamento da PEC ao Congresso Nacional.
  • 2. A PEC 32/2020

    A Proposta de Emenda à Constituição representa a Fase I da chamada “Nova Administração Pública” e  atinge duas importantes dimensões do funcionamento do Estado brasileiro: a organização administrativa e os trabalhadores do setor público. Para os servidores e empregados públicos, o governo propõe mudanças em questões fundamentais como seleção, vínculo, estabilidade, direitos e remuneração. Na organização administrativa, destaca-se a proposta de transferência de atividades públicas para o setor privado e a criação de instrumentos e poderes centralizados na Presidência da República.

    Os novos servidores são o alvo principal da PEC, que pretende garantir aos antigos a maior parte dos direitos previstos na Constituição e benefícios hoje já praticados. Também estão excluídas da sua abrangência as seguintes carreiras: parlamentares, ministros de tribunais superiores, desembargadores, promotores, procuradores, juízes e militares. É bom lembrar, no entanto, que situações posteriores de expressiva assimetria entre servidores novos e antigos podem vir a suscitar novas mudanças na legislação e submeter os antigos a novas regras. Além disso, várias das mudanças propostas terão aplicação imediata e afetarão o trabalho e a vida funcional dos atuais servidores, inclusive a ampliação de situações que podem ensejar a perda de cargo.

    2.1 Seleção, vínculo, direitos e remuneração

    Para contratação de novos servidores, a PEC 32 sugere cinco novos tipos de vínculos com a administração pública: vínculo de experiência, vínculo por prazo determinado, vínculo por prazo indeterminado, cargo típico de Estado e cargo de liderança e assessoramento. O vínculo de experiência, contudo, tem característica diferente dos demais, já que consistirá em etapa avaliativa do concurso público para dois cargos específicos: vínculo por tempo indeterminado e cargo típico de Estado. Ou seja, os servidores concorrentes para esses dois cargos passarão pelo vínculo de experiência por um e dois anos, respectivamente, para então, em caso de efetiva aprovação, posterior cumprimento de 1 ano de estágio probatório, conforme atualmente já previsto.

    A contratação por prazo determinado, por sua vez, poderá ser feita mediante seleção simplificada se houver necessidade decorrente de situações de emergência e calamidade, paralisação de atividades essenciais/acúmulo transitório de serviço ou se forem previstas atividades sazonais, temporárias e sob demanda. Abre-se, portanto, um leque maior de oportunidades para contratações por prazo determinado, tornando esse tipo de vínculo praticamente uma liberalidade do gestor. Atenção especial deve ser dada à possibilidade de contratação temporária em caso de paralisações – fator que passará a exercer pressão sobre movimentos grevistas.

    Cabe ainda mencionar mudanças expressivas no que diz respeito à contratação para cargos de liderança e assessoramento. Esses cargos são equivalentes aos cargos comissionados e às funções gratificadas hoje existentes, parcialmente ocupados por servidores públicos por obrigação legal. Se a reforma administrativa for aprovada tal qual proposta pelo governo, os cargos de liderança e assessoramento podem vir a ser ocupados por quaisquer cidadãos que atendam aos requisitos exigidos, e estarão estendidos a posições com atribuições estratégicas e gerenciais, mas também técnicas. O uso de cargos de confiança para o exercício de atividades técnicas amplia as chances de contratação sem concurso público, ainda que haja a ressalva de que a quantidade máxima de cargos desse tipo deve ser limitada por lei complementar a ser editada futuramente.

    A estabilidade no cargo, tal como consagrada no atual modelo e fundamental à garantia de continuidade das atividades estatais, estará reservada única e exclusivamente aos servidores com cargo típico de Estado, ou seja, àqueles que exercem atividades exclusivamente públicas e indispensáveis. Não há, ainda, indicação de quais carreiras devem se enquadrar nessa definição na PEC. Essa indicação será igualmente feita em legislação posterior. A expectativa é que esta espécie de cargo estará restrita exclusivamente às atribuições cujo exercício é vedado à iniciativa privada e especialmente relacionadas às áreas de fiscalização e de segurança pública. Ou seja, é bastante provável que o governo não pretenda classificar os trabalhadores da saúde, educação, Ciência & Tecnologia nesta categoria.

    Para demissão dos novos servidores, também está previsto tratamento diferenciado para cargos típicos de Estado e servidores contratados por prazo indeterminado. No primeiro caso, mantêm-se as regras atuais (por processo administrativo disciplinar, decisão judicial transitada em julgado e insuficiência de desempenho), mas acresce-se a possibilidade de demissão por decisão judicial colegiada de segunda instância, sem necessidade de que tenha havido trânsito em julgado do processo.  Para os contratados por prazo indeterminado, outras hipóteses poderão, inclusive, justificar a demissão, desde que aprovadas em lei pelo Congresso.

    Do ponto de vista de direitos e remuneração, aos novos servidores também estarão vedadas algumas conquistas dos antigos. Adicionais, promoções e licenças por tempo de serviço serão extintos pela reforma proposta, assim como a possibilidade de reajustes salariais retroativos. Também não será mais possível conceder férias por período superior a trinta dias durante o período aquisitivo de um ano (o que atinge diretamente os docentes do magistério federal, hoje com 45 dias de férias anuais), reduzir a jornada de trabalho do servidor sem correspondente redução de sua remuneração, exceto por questões de saúde, e conceder aposentadoria compulsória como forma de punição. Proíbe-se, além disso, a incorporação ao salário de quaisquer valores porventura recebidos pelo servidor quando do exercício de cargos e funções temporárias. Embora grande parte das vantagens remuneratórias vedadas pela PEC já não exista no serviço público federal, muitos estados e municípios ainda prevêem pagamentos do gênero, como licenças-prêmio e triênios.

    2.2 Contratos com a iniciativa privada e reorganização administrativa

    Atualmente, a Administração Pública já dispõe de vários instrumentos para transferir a execução de determinados serviços públicos ao setor privado, seja por meio de concessões, permissões, autorizações, parcerias público-privadas, ou mesmo, no caso de atividades de natureza social, por meio de contratos com organizações que, em geral, não têm fins lucrativos. Além disso, a terceirização de atividades-meio é uma prática recorrente e já consolidada em diversos órgãos e entidades. Com a PEC 32, o governo pretende aumentar expressivamente a participação da iniciativa privada no serviço público, garantindo sua atuação em qualquer atividade, desde que não privativa de um cargo típico de Estado. Ademais, o texto prevê compartilhamento de estrutura física e de recursos humanos de particulares entre governo e iniciativa privada, inclusive sem contrapartida financeira. Os instrumentos de cooperação serão definidos posteriormente. Até que o sejam, no entanto, estados e municípios terão competência plena para estabelecer suas próprias regras.

    No que toca à reorganização administrativa, a proposta original pretendia conferir poderes excessivos ao presidente, dando-lhe poder para  criar e extinguir unilateralmente cargos, órgãos, ministérios, autarquias e fundações por meio de decreto, sem participação do Poder Legislativo em todos os casos. O parecer da CCJC, contudo, acolheu uma emenda saneadora que suprime esse dispositivo, tendo em vista o próprio risco que ele representa para o princípio de separação dos poderes e para o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira.

    3. Efeitos da reforma

    A reforma administrativa atualmente proposta tem profundo impacto sobre o serviço público e não apenas sobre o conjunto dos servidores. Há risco de que, em função da perda de estabilidade dos profissionais e do aumento provável da rotatividade no setor, os serviços percam qualidade e continuidade. Além disso, a transferência de atividades para iniciativa privada abre margem para novos esquemas de corrupção e traz o risco adicional de eventuais cobranças pela execução de serviços prestados.

    Do ponto de vista da máquina estatal, as mudanças tendem a aumentar a patronagem, ou seja, a possibilidade de uso dos cargos públicos como moeda de troca com parlamentares e partidos, na medida em que amplia a discricionariedade do governo na seleção e contratação de pessoal. A contratação via concurso público e a estabilidade do servidor são fatores que, até hoje, cumpriram justamente a função de desincentivar essa prática na gestão da coisa pública.

    Para os novos servidores, a expectativa é de vagas mais escassas, remunerações mais baixas e carreiras eventualmente mais curtas. Um estudo do Dieese, com base em dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), aponta que a administração pública representava, em 2019, 50% ou mais no total de empregos formais em 38% dos municípios brasileiros. A reorganização do Estado tem impacto, portanto, na própria sustentação de inúmeras economias locais.

    4. Movimentação no Congresso

    A análise da PEC 32/2020 foi iniciada pela Câmara dos Deputados, com rito previsto no art. 202 do seu regimento interno, que se diferencia dos ritos de tramitação das demais proposições legislativas. Em resumo, a PEC é despachada pelo presidente da Mesa à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que deve se pronunciar sobre sua admissibilidade (ou seja, sobre sua adequação aos preceitos constitucionais, sem análise de mérito) no prazo máximo de cinco sessões. Em seguida, se admitida a proposta (a inadmissão garante recurso), o Presidente designa uma Comissão Especial para exame do mérito da proposta no prazo de 40 sessões.

    O parecer da CCJC pela admissibilidade da proposta foi aprovado no último dia 25, com 3 emendas saneadoras. Uma delas suprime a possibilidade de extinção de cargos e órgãos via decreto, outra elimina a proibição para que servidores de cargos típicos de Estado exerçam outra atividade remunerada, e a terceira retira do texto da proposta alguns princípios motivadores do serviço público com o objetivo de evitar controvérsia jurídica. É importante ressaltar que as emendas de mérito à PEC devem ser apresentadas somente na Comissão Especial no decorrer das suas primeiras 10 sessões, garantido o apoio de 1/3 dos deputados ou líderes que os representem. É de se esperar, neste momento, um grande volume de emendas, já que a PEC é polêmica e conta com a oposição especialmente de partidos de esquerda. A votação na CCJC antecipa o caminho tortuoso que a proposta enfrentará em sua tramitação: houve dissidência em diversos partidos, inclusive da base aliada do governo, com a aprovação do parecer do relator por 39 votos contra 26. Além do placar apertado, a apreciação da PEC na CCJC contou com dois votos em separado, apresentando em documento formal as razões de contrariedade à Proposta, um subscrito pela Deputada Joenia Wapichana (Rede) e outro pelos parlamentares do PC do B Orlando Silva, Perpétua Almeida, Alice Portugal e Renildo Calheiros.

    A Comissão Especial ainda não foi instalada. Somente depois de emitido o seu parecer é que a PEC seguirá para o plenário da Casa para aprovação, em dois turnos, com quórum de 3/5 dos deputados em ambos. Se aprovada, a matéria é remetida para a casa legislativa revisora, o Senado, onde será também avaliada pela CCJC, para posterior submissão ao plenário em regime similar ao previsto na Câmara.

    5. Comportamento retórico dos deputados

    De setembro de 2020 ao fim de maio de 2021, 64 dos 513 deputados e deputadas federais proferiram um total de 196 discursos em plenário sobre a reforma administrativa. A maior parte dos discursos, 54,5%, foi contrária à PEC 32/2020  e em 30% deles, o tom predominante foi favorável à reforma tal qual proposta pelo governo. Muitos dos discursos favoráveis tratam a reforma administrativa e a tributária como essenciais à modernização da administração pública e à superação da crise econômica vigente. Os discursos contrários enfatizaram os prejuízos para os servidores e para a qualidade do serviço público e teceram críticas contundentes à destinação de novos poderes ao presidente para extinguir, por decreto, quaisquer órgãos, autarquias, fundações etc. O artigo foi suprimido no parecer da CCJC.

    Quadro 1.

    Dos 21 partidos que discursaram sobre o tema, destacam-se o PT e o Novo com um maior volume de discursos – o primeiro com posição contrária à reforma e o segundo com posição favorável. Deputados e deputadas do PCdoB e PSOL também estiveram mobilizados pelo tema no período, conforme observado no gráfico abaixo. Nos três casos, as mensagens foram críticas à proposta governamental. Além do Novo, também parlamentares do PP, PSD, Republicanos, PSL e MDB manifestaram-se no plenário favoravelmente à PEC 32/2020 de forma significativa. Contudo, diferente do que ocorreu na oposição, que permaneceu alinhada, os discursos dos parlamentares do PSL, DEM e PSD não mostraram o mesmo grau de consenso. É importante ressaltar que isso não garante que haverá dissidência no momento da votação em plenário, embora sinalize desafio maior na construção de consensos intrapartidários, o que, de certa forma, pode prejudicar a aprovação da reforma nos termos em que está posta.

    Gráfico 1. Discursos favoráveis e desfavoráveis à reforma administrativa por partido

    Na defesa da proposta, sobressaem-se Paulo Ganime e Marcel van Hattem, ambos do Novo, Ricardo Barros (PP), Darci de Matos (PSD) e Silva Costa Filho (Republicanos). Os que discursaram mais vezes contra a PEC foram Erika Kokay e Rogério Correia, do PT, Alice Portugal (PCdoB), Talíria Petrone (PSOL) e Joenia Wapichana (Rede).

    Gráfico 2. Deputados com discursos favoráveis à reforma administrativa 

    Gráfico 3. Deputados com  discursos desfavoráveis à reforma administrativa

    6. Pontos de destaque

    • A reforma administrativa, proposta pelo governo por meio da PEC 32/2020, modifica processos de seleção e contratação dos profissionais, facilita demissões,  restringe o direito à estabilidade a cargos típicos de Estado (a serem regulamentados posteriormente), cria um vínculo de experiência inicial que se soma ao estágio probatório já existente e rebaixa o patamar remuneratório dos servidores, com possíveis impactos na qualidade dos serviços públicos e na economia dos municípios menores. A reforma exclui, no entanto, parlamentares, ministros de tribunais superiores, desembargadores, promotores, procuradores, juízes e militares, e, para algumas situações, os servidores antigos. Se aprovada, vai alterar significativamente a forma pela qual o Estado se organiza hoje.
    • Algumas mudanças específicas propostas, como o fim da estabilidade e a discricionariedade na criação de cargos de liderança e assessoramento, por exemplo, criam incentivos para o aprofundamento da patronagem na gestão pública.
    • No cenário de não enquadramento das atividades docentes e científicas em cargos típicos de Estado, de ampliação das hipóteses de perda de cargo e de crescimento dos cargos de liderança e assessoramento, haverá potencial perda de autonomia e crescente direcionamento ideológico em Universidades e Instituições de Pesquisa.
    • Do ponto de vista da parceria com a iniciativa privada, a extensão do compartilhamento de funções prevista na PEC gera risco de ineficiência,  pode implicar aumento do custo dos serviços e abre novos caminhos para o desvio de verbas públicas.
    • A intenção de se  atribuir prerrogativa exclusiva ao presidente para extinguir órgãos, institutos, autarquias, fundações etc. (incluindo universidades federais) foi vetada pela CCJC, tendo sido objeto de vários discursos contrários à PEC. É sinal de que a aliança entre o presidente Bolsonaro e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), não será suficiente para reduzir a Câmara a um comportamento carimbador.
    • Dos 513 deputados e deputadas federais, apenas 64 trataram do assunto desde setembro de 2020. Como era de se esperar, partidos de esquerda são os que mais têm se posicionado na tribuna do plenário contrariamente à proposta da reforma, com destaque para o PT. O Novo é quem mais discursa favoravelmente ao tema, seguido pelo PP e pelo Republicanos. Parte da base aliada do governo vem divergindo no tom dos discursos, uns favoráveis à PEC e outros não, a exemplo do PSL, do DEM e do PSD.
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