Governabilidade e bolsonarismo na Câmara dos Deputados e nos governos estaduais

Postado por OLB em 09/12/22

Joyce Luz, Maiane Bittencourt, Júlio Canello e João Feres Júnior

No último dia 30, com quase 51% dos votos válidos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi eleito Presidente do Brasil. Contudo, como o candidato vitorioso bem afirmou em um de seus discursos proferidos na visita que realizou a Portugal: “A gente derrotou o Bolsonaro e ganhou as eleições, mas o bolsonarismo está vivo.”. Será que Lula estava certo? Bolsonaro de fato se foi prematuramente, escolhendo o afastamento e a reclusão após a derrota nas urnas, mas e o bolsonarismo? Teria ele condições de sobreviver o próprio Bolsonaro ou mesmo servir de plataforma para futuros projetos políticos de seu líder? Os comentaristas que até agora se debruçaram sobre essas questões não são poucos, mas quase todos se preocuparam com o fenômeno social do Bolsonarismo, como, por exemplo, os movimentos de extrema-direita, os grupos bolsonaristas nas redes sociais, os empresários bolsonaristas, os militares etc. Neste artigo, focamos em um lugar fundamental para a sobrevivência de um movimento político, mas que até agora foi pouco analisado, o interior do Legislativo federal, em especial a Câmara dos Deputados.

É inegável que Importantes nomes fiéis a Jair Bolsonaro (PL) nesta última legislatura, como Carla Zambelli (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Ricardo Salles (PL-SP), Eduardo Pazuello (PL-RJ), Marcos Pollon (PL-MS), André Fernandes(PL-CE), Deltinha (PL-MA), André Ferreira (PL-PE), Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS) e Carol de Toni (PL-SC) conseguiram se eleger e estarão na Câmara dos Deputados. Esses políticos guardam não só a promessa de serem “a pedra no sapato” de Lula, como também apontam para a possibilidade de sobrevivência do bolsonarismo nessa arena decisória tão fundamental para o funcionamento da democracia brasileira.

Estudos recentes mostram que o bolsonarismo é um fenômeno bastante complexo. Não há um consenso acerca de como ele deva ser melhor definido, mas entre os vários elementos constitutivos identificados pela literatura estão a adesão a uma pletora de valores, estratégias de comunicação estratificadas, estruturas de coordenação, organização de movimentos semi-autônomos e de públicos, etc. No presente artigo, a fim de possibilitar a análise, vamos tomá-lo como um conjunto de discursos acerca de temas como a  defesa da família tradicional e da heteronormatividade, de um certo tipo de patriotismo, do conservadorismo de valores, do autoritarismo, de anticomunismo, do negacionismo científico, da flexibilização do porte de armas, assim como a rejeição aos direitos humanos e de minorias e à esquerda política. Tentaremos assim responder uma questão bastante relevante para o futuro político do país, particularmente no que toca às relações entre os poderes executivo e legislativo: qual será o real tamanho da bancada bolsonarista na Câmara dos Deputados a partir de 2023.

Como estratégia de identificação desses parlamentares, o Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) analisou o perfil de todos os Deputados Federais e Governadores eleitos pelos partidos do Centrão, principal base de apoio do presidente Bolsonaro (PL) no Legislativo desde meados de 2020. Consideramos como ponto de partida para essa análise, portanto, todos os deputados eleitos pelo PL, PP, PSD, Republicanos, Podemos, Avante, Solidariedade, Patriotas, PROS e PTB. A fim de identificarmos a adesão ideológica do parlamentar, contabilizamos não apenas o apoio oferecido às propostas do atual governo, mas, sobretudo, as informações e discursos divulgados pelos próprios parlamentares em suas principais redes sociais e na mídia.

1. Bolsonarismo na Câmara dos Deutados a partir de 2023

Do total de 260 parlamentares que foram eleitos pelos partidos do Centrão para compor a Câmara dos Deputados a partir de 2023, temos que os não bolsonaristas somam 136 (52%), enquanto os bolsonaristas são 124 (48%). Ainda que 124 seja um número significante, ele representa 24% dos 513 deputados eleitos, ao passo que os não bolsonaristas do Centrão alcançam 26% do total da legislatura.

Gráfico 1. Deputados(as) Federais do Centrão que são ou não Bolsonaristas

Fonte: Observatório do Legislativo Brasileiro.

Olhando com mais cautela para esse grupo de 124 de parlamentares do Centrão que são bolsonaristas, 75, o equivalente a 53% foram recompensados pelos eleitores com a reeleição, ganhando mais 4 anos para defender os ideais e pautas do grupo. Os demais 49 novos deputados bolsonaristas não tem experiência pregressa na Câmara dos Deputados.

Gráfico 2. Deputados(as) Federais do Centrão Bolsonaristas que foram reeleitos(as) ou eleitos(as) pela primeira vez

Fonte: Observatório do Legislativo Brasileiro.

Apesar da permanência do bolsonarismo na Câmara dos Deputados, o número de 136 parlamentares filiados às legendas partidárias do Centrão que não são bolsonaristas é merecedor de atenção. Em termos práticos, eles seriam mais propensos a estabelecer algum diálogo com o futuro governo do presidente Lula para a aprovação de pautas menos conservadoras.

Até agora, pelos partidos que apoiaram Lula no primeiro e no segundo turno das eleições (PT, PCdoB, PV, PSB, PSOL, REDE, SOLIDARIEDADE, AVANTE, AGIR, PDT, CIDADANIA e PROS), o futuro presidente teria aproximadamente 140 deputados em sua base parlamentar na Câmara dos Deputados. Para atingir o quórum necessário para a aprovação de itens mais sensíveis de sua agenda de políticas, o petista ainda terá que buscar o apoio de pelo menos outros 168 parlamentares, ou seja, terá que recorrer aos parlamentares e partidos do Centrão, além de outros partidos do centro e centro-direita, como MDB e PSDB, por exemplo.

Nesse possível cenário, seria bem difícil para Lula conseguir estabelecer algum diálogo dentro do PL. A sigla é, dentre todos os partidos que compõem o Centrão, a que mais possui parlamentares ligados às ideias e práticas bolsonaristas. Do total de 99 deputados, somente 18 não foram identificados por nossa equipe com o bolsonarismo. Tal dado, no entanto, não surpreende em termos de possíveis negociações com o futuro governo. Logo após o segundo turno das eleições, o PL foi o primeiro partido a declarar oficialmente que faria oposição a Lula.

A situação, porém, difere para os demais partidos do Centrão, com destaque para Republicanos, PP e – especialmente – PSD. Excetuando o PL, essas são siglas com maior quantidade de deputados e, por isso, mais interessantes para a negociação do ponto de vista da formação de maiorias parlamentares para a aprovação dos projetos do executivo. Nesses partidos, diferente do que acontece no PL, a quantidade de parlamentares que não estão diretamente conectados a discursos e práticas bolsonaristas supera em muito a quantidade de bolsonaristas. Mesmo no Republicanos, partido tradicionalmente ligado à Igreja Universal, a proporção de não bolsonaristas é 30% maior da de bolsonaristas. No PP os não bolsonaristas são quase 2,5 mais numerosos e no PSD cinco vezes. Logo, acordos entre o executivo e esses partidos para a aprovação de políticas certamente são bem mais viáveis.

Gráfico 3. Deputados(as) bolsonaristos e não bolsonaristas por partidos do Centrão

Fonte: Observatório do Legislativo Brasileiro.

2. Bolsonarismo nos governos estaduais a partir de 2023

Ao contrário do maior espaço de negociação que Lula poderá obter no interior da Câmara dos Deputados, considerando os parlamentares que são do Centrão, mas não necessariamente bolsonaristas, o cenário para os governos estaduais não se mostra muito promissor. Dos 27 estados, considerando o Distrito Federal, 15 deles contarão com governadores representantes do bolsonarismo, ou seja, mais da metade.

Acre, Amazonas, Amapá, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins elegeram representantes que compactuam com as práticas e discursos bolsonaristas.

Gráfico 4. Goverandore(as) eleitos(as) que apoiaram ou não Bolsonaro

Fonte: Observatório do Legislativo Brasileiro.

Separando os estados de acordo com suas respectivas regiões, o Nordeste se destaca por não ter eleito nenhum governador classificado como bolsonarista. Do outro lado está a região Centro-Oeste com 100% dos governadores aderentes aos ideais e práticas bolsonaristas. Se no nível federal Lula representa uma derrota ao bolsonarismo, não podemos afirmar o mesmo para os estados, onde o bolsonarismo mostrou grande força eleitoral.

Gráfico 5. Percentual de Estados por Regiões que apoiaram Bolsonaro e que não apoiaram

Fonte: Observatório do Legislativo Brasileiro.

3. No legislativo e além

O bolsonarismo é frequentemente pensado como um problema da democracia brasileira. Mas é preciso reconhecer que para resolver esse problema, ou mitigá-lo, é necessário conhecê-lo em detalhe. Nesse artigo, produzimos um rápido panorama de sua operação no órgão máximo de representação do povo brasileiro, a Câmara dos Deputados, com atenção aos partidos do Centrão, bem como nos governos estaduais. Ainda que a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)  tenha colocado fim a 4 anos de governo de Jair Bolsonaro (PL), não é possível afirmar que o Bolsonarismo, entendido como um conjunto de ações e discursos conservadores e autoritários, tenha chegado ao fim.

Por um lado, a força do bolsonarismo na Câmara dos Deputados não é suficiente para que, sozinho, ele possa estabelecer vetos importantes ou sistemáticos ao processo legislativo, ou mesmo inviabilizar a composição de uma base parlamentar de sustentação do executivo, ainda que esse apoio legislativo exija uma maior inflexão do futuro governo ao centro – ou mesmo ao centro-direita – do espectro ideológico. Mesmo que possa haver deputados bolsonaristas em partidos como MDB e PSDB, que não fazem parte do Centrão, seu número é menos expressivo e, portanto, não alteraria significativamente a análise acima.

Para além da metodologia adotada aqui para averiguar a pertença ideológica do parlamentar, é preciso ter em mente que o bolsonarismo é um movimento muito ligado à figura carismática de seu líder, Jair Bolsonaro, político cujo destino é hoje incerto. Além de questões de natureza legal que possam afetar o futuro do atual presidente, não se sabe se ela terá disposição ou condições de permanecer na vida política. Trazendo para o assunto que nos ocupa aqui, a depender do destino político de Bolsonaro, a adesão desses deputados ao bolsonarismo é algo que pode ser mitigado. Muitos deles não apostavam suas carreiras políticas na adesão radical ao conservadorismo no passado, e podem voltar a essa condição.

Por outro lado, a questão da dominância bolsonarista entre os governadores não é um problema tão fundamental para Lula, pelo menos do ponto de vista da governabilidade. Governos estaduais são muito dependentes da União, tanto no que toca ao seu financiamento, quanto na transferência de recursos via programas federais e convênios. Em outras palavras, fora dos períodos eleitorais, não faz muito sentido para um governador fazer oposição ativa ao governo federal. Ademais, vale também para os governadores a questão aberta sobre o futuro de Bolsonaro e do “movimento” que ele criou ou deu vazão como representante de ocasião.

A despeito das várias vitórias do bolsonarismo Brasil afora, há espaço para a governabilidade sob o Governo Lula e mesmo para que o bolsonarismo lidere a oposição, de forma democrática. Ainda que Bolsonaro tenha sido derrotado por Lula na disputa presidencial, com margem estreita, o bolsonarismo se mostrou fenômeno de enorme força política eleitoral nas eleições de 2022. Seu futuro, contudo, depende da habilidade política de Jair Bolsonaro e de seu grupo de manter tamanho capital político. Essa é coisa difícil de ser feita fora do governo, particularmente porque o ex-capitão se mostrou pouco competente na arena político-partidária ao longo de toda sua gestão, a exemplo da frustrada criação de um partido próprio, o Aliança pelo Brasil, da divisão interna em sua agremiação anterior, o PSL, e das várias mudanças nas indicações de líderes e vice-líderes do governo em ambas as casas legislativas.

Ao invés de se basear em uma forte base partidária, o bolsonarismo se ancorou em grande medida em uma rede própria de comunicação, formada por um sem número de perfis em redes sociais, grupos e listas em aplicativos de mensagens instantâneas, mídias tradicionais aliadas e a atuação rizomática de vários pastores evangélicos conservadores. Se as evidências levantadas pelas CPMIs das Fake News e da Pandemia estiverem corretas, a máquina de comunicação do bolsonarismo era comandada pelo chamado “Gabinete do Ódio”, a partir do Palácio do Planalto, e contava com a colaboração de um sem número de apoiadores empregados em cargos de confiança para a produção de conteúdo e engajamento. Ou seja, o futuro do bolsonarismo, como o conhecemos até agora, também dependerá da habilidade do governo Lula de desmontar essa máquina instalada no coração do executivo federal, entre outras iniciativas efetivas para combater a disseminação de notícias falsas e do discurso do ódio por todo o tecido social. E isso terá consequências inclusive para a base de sustentação do bolsonarismo na Câmara dos Deputados e seu apoio em governos estaduais.

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