Mulheres na Câmara: produção legislativa dos últimos anos e perspectivas para 2021

Postado por OLB em 08/03/21

Debora Gershon, Joaquim Meira

1. Introdução

O ano de 2021 começa na Câmara sem qualquer expectativa de avanços expressivos em pautas femininas e feministas, apesar de haver, neste ano, mais mulheres do que jamais houve na Mesa Diretora, órgão importante na condução e organização dos trabalhos legislativos. Três das quatro secretarias eleitas em fevereiro são ocupadas por mulheres: Marília Arraes (PT) ocupa a segunda secretaria, Rose Modesto (PSDB) a terceira, e Rosângela Gomes (Republicanos) a quarta. No biênio 2019-2020, Soraya Santos (PL) foi a única mulher a integrar a Mesa, tendo assumido o papel de primeira secretária. De 1999 a 2020, apenas quatro mulheres foram eleitas para a Mesa Diretora, segundo estudos do próprio OLB, o que faz do feito de 2021 motivo de celebração. Entretanto, dificilmente isso reverterá o quadro de sub-representação das mulheres em cargos estratégicos, com impacto efetivo sobre a agenda legislativa.

A Câmara é majoritariamente masculina, do ponto de vista numérico e cultural, e sua agenda é formalmente definida pelo presidente, que partilha tal responsabilidade com as lideranças partidárias, em sua maioria homens. A presidência da Câmara em 2021 está nas mãos do deputado Arthur Lira (PP), tendo havido apenas uma única candidata feminina ao posto, Luiza Erundina (PSOL), sem qualquer viabilidade eleitoral. O novo presidente tem posicionamento conservador e já foi acusado de violência doméstica em 2006, embora tenha sido absolvido em processo cujo resultado é ainda hoje contestado pela suposta vítima.

Para a presidência das comissões, ao menos uma mulher, Bia Kicis (PSL), indicada pelo próprio Arthur Lira, deve presidir uma das mais importantes comissões da Casa – a de Constituição e Justiça (CCJ). Kicis é aliada do presidente Bolsonaro e de perfil extremamente conservador e polêmico. Muito provavelmente não contribuirá para o avanço de pautas que assegurem direitos de longa data reivindicados por movimentos sociais de mulheres e organizações da sociedade civil. Ao contrário, é possível que faça exatamente o inverso, especialmente no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos.

Para além da CCJC, é importante observar como a coalizão majoritária, que levou à vitória do candidato governista, Arthur Lira (PP), se comportará em temas sociais, de interesse específico das mulheres. Há indícios de que a polarização observada no início de 2019 em assuntos relativos a políticas de gênero e políticas para a mulher se reproduzirá, com partidos de centro-esquerda, de um lado, e partidos de direita e extrema direita do outro. Neste início de 2021, já foram apresentadas diversas proposições que tendem a reforçar essa polarização, a exemplo o PL 232/2021, da deputada Carla Zambeli (PSL), que retrocede na notificação de abuso sexual por parte das mulheres, exigindo emissão de boletim de ocorrência, ou da Indicação 23/2021, da deputada Chris Tornieto (PSL), que pretende excluir o termo “gênero” em resolução do Conselho Nacional de Educação, ou ainda do PL 211/2021, da mesma autora, que proíbe o uso de “linguagem neutra” na língua portuguesa. Por outro lado, há também projetos que visam a reduzir a desigualdade entre os sexos nas relações de trabalho, que reservam vagas de emprego ou estágio para mulheres transexuais, travestis e homens transexuais em empresas privadas e que instituem cotas para transgêneros nas eleições[1]. Embora a pauta econômica deva prevalecer sobre as demais diante da crise de grandes proporções provocada pela pandemia da Covid-19, um balanço de 2020 feito pelo CFEMEA[2] alerta para o fato de que, mesmo em ano marcado por ações emergenciais de combate à crise decorrente da propagação do coronavírus, foram inúmeras as tentativas do Executivo e do Legislativo de retrocesso no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.

Para avançar nesses direitos, mas também em pautas transversais com impacto potencial significativo na desigualdade de gênero que assola o Brasil, é preciso que haja mais mulheres produzindo políticas públicas.

Estudo realizado em 2020 pelo Observatório do Legislativo Brasileiro mostra que, além de sub-representadas numericamente na Câmara, as mulheres ocupam um menor número de posições institucionais relevantes. Nunca presidiram a Casa, comandam pouquíssimas comissões, destacando-se as de competência e impacto mais restritos, e têm participação em posições de relatoria proporcional à sua bancada, sem qualquer sinal, portanto, de correção da sub-representação geral. Além disso, elas têm carreira legislativa mais curta do que a dos homens. Esse quadro, vale dizer, não se justifica apenas pelas barreiras enfrentadas no momento eleitoral, nem tampouco condizem com seu desempenho individual uma vez eleitas. Mulheres parlamentares têm produção legislativa per-capita semelhante à dos homens (e inclusive um pouco superior), investem mais na sua própria formação para o cargo e, por razões que ainda não exploramos, têm chances maiores de aprovação dos seus projetos.

O presente Boletim, produzido no início de 2021, tem por objetivo dar prosseguimento a esse debate, de modo a lançar luz sobre o importante papel que as mulheres exercem no processo legislativo, a despeito dos obstáculos existentes. Para isso, comparamos a produção legislativa de homens e mulheres na Câmara dos Deputados de 1989 a 2020, com foco em dados relativos a propostas legislativas, emendas, requerimentos de informação e audiências públicas. Comparamos as diferentes legislaturas e governos, mas com especial atenção à legislatura atual.

2. Produção legislativa por Gênero na Câmara

2.1 Mulheres aumentam sua efetividade na Câmara e têm produção legislativa média maior do que a dos homens

A atual legislatura da Câmara tem a maior proporção de mulheres eleitas da história da Câmara (15%), embora tal percentual esteja ainda muito abaixo do observado em outros países, inclusive na América Latina. Reunimos, neste boletim, alguns dados para verificar se esse grupo historicamente pequeno de parlamentares possui atuação legislativa diferente da dos homens.

No que se refere às proposições legislativas, observa-se um aumento na efetividade da atuação das parlamentares mulheres: o aumento no número de deputadas foi acompanhado de um aumento ligeiramente maior no número de proposições apresentadas. Na 48ª legislatura (1987-1991), a primeira desde a redemocratização, as mulheres eram apenas 5% da Câmara e apresentavam 4% das proposições, hoje elas são 15% e suas proposições chegam a mais de 16% do total. O gráfico abaixo demonstra a proporção de proposições legislativas apresentadas por homens e por mulheres na Câmara, comparada à proporção de mulheres deputadas.

Gráfico 1. Proposições apresentadas por sexo do/a Deputado/a

Quando analisada a média de proposições apresentadas por cada deputada e deputado na Câmara, anualmente, desde a redemocratização, nota-se que a média feminina ultrapassa a masculina em diversos anos da série e que, quando isso não acontece, as mulheres mantêm-se com produção média bastante semelhante à dos homens. Na atual legislatura, contudo, há um descolamento expressivo, digno de atenção, das duas curvas expostas no gráfico abaixo. Em 2019, cada deputada apresentou em média 15 proposições contra 10 de iniciativa dos deputados. Embora essa diferença tenha caído marginalmente em 2020 (média de 12 projetos de mulheres contra 9 de homens), as mulheres permanecem com uma produção média maior do que a dos homens.

Gráfico 2. Proposições apresentadas por sexo do/a Deputado/a, 1989-2020

Se observado o tipo de proposição iniciada por mulheres, nota-se, além disso, atenção especial às Propostas de Emenda à Constituição (PECs), que tratam de temas mais estruturais, exigindo, inclusive, quórum qualificado para aprovação.

Gráfico 3. Proporção de proposições apresentadas por sexo do/a Deputado/a, 2019-2020

2.2 Direitos humanos, educação e saúde: propostas com maior participação feminina na autoria

Consideramos nesta seção os temas das proposições apresentadas por homens e mulheres, de acordo com a classificação disponibilizada pelo Sistema de Documentação da Câmara. A análise da produção legislativa por tema revela o tamanho da participação das mulheres em assuntos específicos. Os temas Direitos Humanos e Minorias (25%), Educação e Saúde (20%) são os de maior participação proporcional feminina. No outro extremo, temas como Meio Ambiente, Agricultura e Pecuária, e Esporte e Lazer têm maior participação masculina: mulheres apresentaram apenas 7,5%, 8% e 9% das proposições nestes temas, respectivamente.

Gráfico 4. Temas de proposições apresentadas por sexo do/a Deputado/a

Se considerados os grupos de mulheres e homens, em separado, nota-se, contudo, que Economia é tema de grande interesse e produção da bancada de ambos. É o terceiro tema, em termos de importância, entre as mulheres e o segundo entre os homens.

Gráfico 5. Temas de proposições apresentadas por sexo do/a Deputado/a

2.3 Emendas de plenário e requerimentos de informação: mulheres superam os homens a despeito de sua sub-representação

O esforço de produção legislativa não se resume à autoria de propostas e projetos. A apresentação de emendas é também atividade de suma importância no processo legislativo. As emendas podem adicionar questões marginais às propostas em análise ou mudá-las radicalmente. A apresentação de emendas requer análise pormenorizada do teor do projeto e, ao mesmo tempo, reflete o grau de profissionalização das assessorias parlamentares. Muitas vezes as emendas são mais importantes do que a proposição original no desfecho do projeto de lei. Por isso, são um importante indicador da atividade parlamentar.

Apesar de numericamente sub-representadas na Câmara, as mulheres dedicam-se à atividade de emendamento tanto quanto os homens, superando-os nas legislaturas coincidentes com o mandato de Bolsonaro e, especialmente, com os de Lula, sem que ainda tenhamos explorado as razões para tanto.

Gráfico 6. Emendas de plenário por sexo do/a Deputado/a, 1998-2020

Se observados os requerimentos de informação, as mulheres também assumem a liderança na Casa em praticamente todas as legislaturas, à exceção de curtos períodos nos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Lula II e Dilma II. Os requerimentos de informação constituem importante instrumento à disposição do Congresso para cobrar transparência do Executivo. De um ponto de vista político, a apresentação desses requerimentos pode revelar a dificuldade dos gabinetes em acumular informação de forma independente do governo, mas também pode cumprir tão somente a função de tornar clara/exposta sua preferência para orientação da coalizão.

Gráfico 7. Requerimentos de informação por sexo do/a Deputado/a, 1989-2020

3. Participação da sociedade civil na Câmara é fortemente relacionada à atuação das mulheres

Outro tipo de requerimento com impacto relevante na produção de políticas públicas é o requerimento de audiência pública, feito para convidar organizações, movimentos sociais e instituições externas ao Congresso para o debate de determinados temas. Sem as audiências, a participação formal da sociedade civil no processo legislativo fica comprometida. Da redemocratização até o momento, a média anual de requerimentos de audiência apresentados por mulheres foi sistematicamente maior do que a apresentada pelos homens, com poucas exceções. Houve crescimento geral dos pedidos de audiência pública a partir de meados do governo Dilma I e durante os governos Temer e Bolsonaro, mas as mulheres mantiveram ao longo do período uma proporção de requerimentos em relação aos seus pares homens de aproximadamente 2 para 1, como mostra o gráfico abaixo.

Gráfico 8. Requerimentos de Audiência Pública apresentados por sexo do/a Deputado/a, 2000-2020

4. Fiscalização da máquina pública: mulheres têm posição de destaque

Por fim, analisamos também a participação de mulheres e homens em requerimentos para a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI). Segundo sua definição constitucional, a CPI tem como função investigar fatos que sejam muito importantes “para a vida pública e para a ordem constitucional, legal, econômica ou social do País”. Por meio da CPI o Legislativo se investe de poderes para investigar as ações tanto de agentes dos outros poderes quanto de agentes e instituições da sociedade.

A proposição de uma CPI pode ser feita por qualquer parlamentar, mas sua aprovação depende da votação favorável de ⅓ da Câmara. Ao longo dos últimos 30 anos, as mulheres, na média, assinaram mais requerimentos de CPI do que os homens, embora haja certa convergência a respeito dos momentos oportunos para apresentação desse tipo de requerimento, conforme figura abaixo. As exceções ficam por conta do governo Temer e Bolsonaro, em que as curvas do gráfico abaixo se descolam. Ou seja, há decréscimo da média de pedidos de CPI de iniciativa dos homens contra um aumento dessa média quando observadas as mulheres.

Gráfico 9. Requerimentos de Instituição de CPI por sexo do/a Deputado/a, 1989-2020

5. Considerações finais

Embora sub-representadas no Congresso, numericamente e em cargos de liderança, as mulheres exercem atividade legislativa significativa e muitas vezes com desempenho superior ao dos homens. Do ponto de vista da proposição de novos projetos de lei e emendamento, por exemplo, a média é bastante similar entre os dois sexos, com uma participação expressiva de mulheres em temas de grande impacto social, como Direitos Humanos, Educação e Saúde. Quando avaliamos outros indicadores de atividade parlamentar – requerimentos de CPI, informação e audiências públicas –, a performance das mulheres é, em geral, melhor que a dos homens. Sua atuação fortalece o papel de fiscalização do poder legislativo e contribui sobremaneira para a consolidação da participação da sociedade civil no processo de elaboração de políticas públicas.

Tal desempenho legislativo é fator mais do que suficiente e relevante para fortalecer argumentos e movimentos que eliminem entraves dos processos eleitoral e legislativo com o fito de aumentar a representação feminina no parlamento. Uma Câmara com uma bancada feminina maior e com mais mulheres em cargos estratégicos será certamente uma Câmara mais diversa, mais representativa e com grande efetividade no trabalho parlamentar. O ano de 2021 traz alguns avanços na composição da Mesa e tende a reproduzir o bom desempenho feminino na casa, mas sem grandes mudanças no patamar da desigualdade de gênero da instituição.

[1] CFEMEA, Radar Feminista no Congresso Nacional, 01 a 05 de fevereiro de 2021.

[2] CFEMEA, Mulheres e Resistência no Congresso Nacional 2020.

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